
DIMENSÃO SÓCIO E CULTURAL NA ÁREA DA SAÚDE
Há décadas já se tem o entendimento de que a ausência de doenças manifestas não representa em toda sua complexidade, pois fatores espirituais, sociais, culturais, ambientais e em demais áreas da nossa vida interferem na manifestação de sintomas, autopercepção da saúde e processos diagnósticos e terapêuticos.
Se buscarmos na história podemos ver vários exemplos de situações que hoje são consideradas doenças e exigem uma interferência de um profissional de saúde, mas que nem sempre foi assim. Como exemplo recente podemos citar o hábito de fumar, em um período não tão distante do nosso, em que muitos de vocês leitores podem se lembrar ou perguntar aos seus pais, era considerado normal e até sinônimo de status portar um cigarro em mãos e fumar em locais públicos. Até hoje, se visitarmos locais como Montenegro ou Grécia veremos que mais de 46% da população adulta é fumante, mesmo com leis antitabagismo. Esse é um exemplo clássico e recente de como a bagagem cultural de uma população pode influenciar diretamente a saúde desse povo.
Além disso, é muito fácil notar que as condições de saúde de pessoas que moram em diferentes locais podem variar muito. Por exemplo, os problemas de saúde de uma comunidade ribeirinha no Norte do país certamente serão diferentes daqueles moradores de rua em São Paulo e ambos serão bem diferentes de populações residentes em povoados de pequenas cidades do Nordeste que vivem de agricultura familiar. Isso porque os determinantes sociais de saúde (DSS), que podem ser definidos como “fatores sociais, econômicos, culturais, étinicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população” (CNDSS).
A dimensão social precisa ser valorizada em cada consulta e cada decisão de saúde pública a ser tomada. Muitos pacientes trazem queixas completamente relacionada ao ciclo de vida e as condições de renda e moradia. Um exemplo clássico e rotineiro é a dependência ao uso de remédios para dormir – chamados benzodiazepínicos – descrita em maior número em mulheres acima de 50 anos. Muitas dessas trazem em consultas queixas clínicas misturadas a reclamações sobre a queda da libido, saída dos filhos de casa, preocupação com os filhos adultos, criação dos netos, dificuldade de realocação no mercado de trabalho, entre outras. Não estamos afirmando que exista uma correlação direta entre esses dois paralelos, mas para qualquer profissional com sensibilidade de entender o que está ouvindo, fica claro que a saída “dormir para fugir das preocupações” parece fazer sentido e se relaciona com o maior uso desse tipo de medicação.
Além disso, vale considerar que as condições físicas de moradia e renda são importantíssimos determinantes da saúde de uma população. Rudolph Virchow (1821-1902) já dizia “a medicina é uma ciência social e a política não é, senão, medicina em larga escala”. Portanto, é secular a concepção de que medicina e política são ciências complementares e necessárias umas às outras. Podemos ter exemplos recentes de como definições políticas podem ter tanta (ou mais) influência em condições de saúde como decisões clínicas tomadas em consultório. Durante os últimos meses pudemos testemunhar diferentes formas de lidar com a pandemia de Covid-19 em diferentes contextos e hoje já podemos comparar políticas públicas (entre nações, estados, municípios e, até mesmo, em um mesmo território) e ver diferenças importantes de desfechos clínicos (morbi e mortalidade). Por exemplo, na capital São Paulo, foi feito estudo que identificou que o risco de morrer por Covid foi de 50% a mais para os moradores de regiões de favela.
Por fim, sugerimos um exercício de reflexão ao leitor profissional de saúde: reflita se é rotineiro na sua prática indagar verdadeiramente sobre os hábitos de vida, e não só perguntar se fuma, se consome bebidas alcoólicas ou se pratica atividade física. Pergunte-se se você pergunta ao paciente sobre seus sentimentos, suas relações familiares, sobre suas condições de trabalho, moradia, transporte e lazer. Dê atenção a pessoa que está a sua frente como um todo, considerando sua história, valores a qual foi educada, princípios de vida, objetivos, crenças e expectativas. Nas próximas consultas esperamos que a dimensão social e cultural da pessoa seja considerada na sua análise, formulação de hipóteses diagnósticas e plano.