Mãe
- integralizablog
- 16 de dez. de 2022
- 3 min de leitura
Hoje vou contar uma história, uma história sobre amor e caos…
Certa vez, fui a minha universidade acompanhar meu orientador da liga em um atendimento no ambulatório de genética da universidade. Sempre que o acompanho, fico reflexiva sobre a vida. Lidar com doenças de etiologia genética não é simples, uma vez que comunicação de notícias (muito) difíceis faz parte da rotina. E quando digo sobre notícias difíceis estou falando que, muitas vezes, as doenças são incuráveis.
Naquele dia estava muito quente, como sempre. Eram quase três da tarde quando entram no consultório uma mulher, aparentemente próxima dos 50 anos, empurrando, na cadeira de rodas, um rapaz de 36 anos. O paciente, o rapaz, manteve-se a anamnese inteira em silêncio. A mulher inquieta - com os cabelos bagunçados, o semblante cansado (e ao mesmo tempo cheio de força) - que falou a HDA inteira, era a sua mãe. Ela nos contou que J.S era formado em matemática, que era um homem muito inteligente, e também que há pelo menos uns 6 anos costumava trabalhar num grande mercado da cidade. No entanto, encontrava-se afastado das atividades pois não conseguia mais executar suas tarefas.
J.S sempre foi um homem ativo, trabalhador, dedicado. Mas mãe devota percebe tudo, aliás, é quase sempre a primeira a perceber. De acordo com ela, há uns bons anos, percebeu que a marcha do seu filho ficou um pouco diferente, ele “às vezes puxava a perna para andar”. Todo mundo dizia que era coisa da cabeça dela, mas nos últimos anos isso foi piorando cada vez mais. Então, iniciou-se uma saga incansável por um diagnóstico. Enquanto acompanhava seu filho a muitas visitas médicas sem uma resposta clara e o via piorar dia após dia, a Mãe foi vendendo tudo de valor que possuía para custear as consultas e sustentar seu filho, até mesmo seu carro, e alguns móveis. Finalmente, em uma consulta com um neurologista, que lhe passou uma TC de crânio, foi possível ver o que estava lá: alterações no cerebelo e tronco cerebral, o diagnóstico estava quase fechado, ataxia espinocerebelar (SCA), uma doença neurodegenerativa, mas era preciso saber o tipo. Assim, foram encaminhados para avaliação do geneticista.
No exame físico, pedimos para o paciente deambular em linha reta, e este apresentou uma marcha atáxica, além de coordenação motora comprometida (não conseguia colocar o indicador na ponta do nariz).
Durante a conversa, a mãe começou a chorar de maneira leve, mas desesperada, era possível sentir o caos que estava a sua vida ao olhar para ela. Era possível sentir o amor por seu filho em seu olhar. E ela me encarava aos prantos e em pé, estava tão angustiada que não conseguia ficar sentada, ao contar que outros parentes paternos que possuíam sintomas parecidos morreram acamados, emagrecidos, em uma situação muito triste e que ela não queria ver o filho dela assim. Esperançosa por um tratamento, uma cura, um milagre, deixava muito claro que buscava uma forma de fazer com que ele parasse de piorar e infelizmente, sabíamos que isso não aconteceria.
Me contou que venderia seu celular, pois era o que lhe restava para custear o teste genético. O professor, cuidadosamente, avisou-a que solicitaria o teste genético, e que quando o resultado estivesse em mãos, ela compareceria para uma conversa muito sincera e franca. Assim, pediu que ela vinhesse pronta para que isso acontecesse. A mãe, no entanto, aparentemente se mostrou um pouco aliviada por ter uma direção, uma resposta mais definitiva do que o seu filho teria.
Quando saíram da sala, um sentimento de vazio me tomou, um dos pequenos choques que a medicina te dá que te faz ficar reflexivo sobre a sua própria vida. Em toda consulta, a mãe tratou seu filho como uma criança, um bebê, em um forte instinto de proteção. Como se ele não tivesse mais consciência dos fatos, maturidade, ou vontades próprias, e eu que me imaginei em ambas situações por alguns segundos, me senti muito mal com isso. Ao mesmo tempo, me senti grata pelas coisas que tenho.
Autoria: Ana Carina Faleta
Muito interessante mesmo pra quem não é da área, parabéns!