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A doce Rita e a lição de Espiritualidade

  • integralizablog
  • 26 de mar. de 2021
  • 5 min de leitura

Mais uma paciente já no final de expediente de um longo dia de atendimentos. Dona Rita entrou portando seu característico lenço sobre a cabeça que jamais viria a remover durante os encontros que se seguiriam. Escondia sob o lenço os cabelos ou algo mais que não permitia ser contemplado. Sua face com um sorriso escondido, fazia transbordar por meio do semblante uma tristeza embutida.


Perguntei-lhe no que podia ajudá-la, então me respondeu:

– Tenho pressão alta, minha doutora. – Foi assim que sempre se dirigiu a mim. Estou sem remédio e não sei como está minha pressão.


Após a coleta da história atual e antecedentes, perguntei-lhe com quem morava, e D. Rita, com os olhos marejados, respondeu:

– Hoje me sinto só, minha doutora – e relatou um pouco da sua história. Relatou que teve três filhos, mas o filho caçula fora assassinado em um assalto, havia pouco mais de um ano. O marido que estava doente também acabara de falecer e, como consequência, ela sentia uma saudade profunda dele, um esposo amigo e companheiro que fora, cuja falta se somava a dor da perda do filho caçula. E, para completar, a filha, se encontrava gravemente enferma. Acometida com câncer de mama, despertava em sua sofrida mãe um medo de também perdê-la. Só lhe restava, além dela, o filho mais velho que a mantinha financeiramente, desde a morte do marido. Citara, também, uma neta que levava o filho para passar temporadas amiúde na sua casa, desde que a filha adoecera.


Ela classificava os referidos infortúnios como “designíos da vida para ver até onde a sua fé suporta”. Após essa consulta, comecei a questionar-me e refletir qual seria o tamanho de minha fé, comparada aos testes aos quais essa senhora estava sendo submetida. Medicada, solicitados os exames, perguntei-lhe se temporariamente desejaria um tranquilizante, ao que me respondeu:

– Não se preocupe minha doutora, tomo meu chá de camomila, e rezo, pois preciso estar em vigília para cuidar da minha filha.


D. Rita retornou após realizar os exames, porém com um prazo maior que o esperado, pela dificuldade em realizá-los. No entanto, outros fatores também contribuíram. A filha também morrera. Contou que procurava entender o que Deus queria dela, mas na sua indagação não havia revolta, senão um genuíno desejo de compreender sua história. Voltou a marejar os olhos, porém não chorava copiosamente como seria o esperado para uma pessoa em tais circunstâncias.

– Minha doutora, me faz bem vir aqui falar com a senhora, pois não tenho com quem conversar. Desde que minha filha morreu, a filha dela, minha neta, passou a morar comigo levando o meu bisneto; ela sai à noite, deixando a criança aos meus cuidados. O menino sente a falta da avó e da mãe, e eu me vejo sem forças para cuidar de uma criança tão pequena de apenas quatro anos. Dorme comigo, pois à noite fica com medo e por mais que eu tenha ouvido dizer, que não é bom deixar a criança dormir com um adulto, para mim é menos cansativo. O que a senhora acha?

Concordei, pois ambos estavam se compensando nas carências e perdas que a vida lhes colocava.


Meses se passaram e D. Rita retornou quase um ano depois. Neste novo encontro, relata que o filho mais velho também havia morrido assassinado por um companheiro da peixaria onde trabalhava.

– E agora, minha doutora, não sei o que fazer para me manter, já não tenho idade de voltar a trabalhar para me sustentar.

Acalmei-a dizendo que a encaminharia para a assistente social a fim de orientá-la para receber um benefício pela idade e falta de recursos. Perguntei se o assassino do filho tinha sido preso, me respondeu que não.

– Não foi pego em flagrante, mas testemunhas garantem quem foi o autor da morte do meu filho, e não quiseram testemunhar com receio de vingança.

– E por que a senhora não o denúncia à polícia? – perguntei.

E a nobreza de seu espírito me respondeu:

– De que adianta minha doutora? Isso não trará meu filho de volta, tenho é rezado para a alma dele, não fazer isso com mais nenhum ser humano, e provocar uma dor igual à que estou sentindo. Passo por ele e peço à Mãe Maria que toque seu coração e se arrependa do que fez.


Dessa vez, eu é que marejei os olhos por uma resignação que nunca tinha presenciado nessa minha existência, neste período já com mais de vinte anos de profissão.

Levantei e abracei aquele ser que para mim era a representação da bondade, pureza e resignação. Ela agradeceu o abraço perguntando:

– Não é assim que devemos agir, minha doutora?

Abanei positivamente a cabeça e reforcei que apesar de compreender que deveríamos ter essa nobreza de espírito e saber perdoar, não conseguia me imaginar reagindo igual a ela naquele momento, ao que ela retrucou:

– Mas a senhora é tão boa, trata a gente com tanto carinho, fico tão feliz quando venho até aqui conversar com a senhora!

– O que faço está longe da representação do seu amor incondicional que a senhora está me mostrando – respondi emocionada.

– Meu consolo agora é meu bisneto, minha doutora. Ele está definitivamente morando comigo, e a mãe dele continua saindo e o largando em casa, se envolveu com homem casado e não liga mais para o filho. O “trocinho” é carinhoso, e se a senhora soubesse, chega a ficar de joelhos rezando comigo nos momentos em que me dedico às minhas orações.

Lembrando de D. Rita fico reflexiva, quanto que ela poderia ter desenvolvido de complicações da hipertensão ou apresentado outras patologias, atribuo a sua natureza interna de resigno, e principalmente de saber perdoar, diante de tantas intempéries da vida.

Maria Suely


Comentário do Blog:


A OMS definiu saúde, em 1998, como “um estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social, e não meramente a ausência de doença ou enfermidade.” Extraímos desse conceito a importância que tem a Espiritualidade, como uma dimensão do Ser humano e que, portanto, não pode ser negligenciada no processo de saúde do indivíduo. Refletindo sobre isso e sobre o relato apresentado nos debruçamos em vários questionamentos pertinentes à formação médica:


“O que é Espiritualidade?”

A espiritualidade é a aproximação com o sagrado ou transcendental através da busca humana por compreensão das questões da vida, que pode ou não estar vinculada a uma determinada religião. Ela faz uma ligação entre a matéria e o que vai além dela, valendo-se das emoções e suas potencialidades para dar significado e sentido a existência humana.

Acesse o nosso Glossário para mais informações sobre esse tema.


“Qual o impacto da espiritualidade sobre a saúde física?”

Apesar de ser um campo de estudo rico e pouco explorado, alguns estudos demostram relação entre a espiritualidade e a saúde física, mais precisamente sobre sua relação com o sistema imune, neoplasias, doenças cardiovasculares, saúde mental e mortalidade. A Espiritualidade também se mostra uma poderosa ferramenta na prevenção de doenças e, também, no fortalecimento do enfrentamento das enfermidades. O que nos leva ao próximo questionamento.


“As universidades médicas trazem em seu currículo disciplinas que tratam de espiritualidade?”

Apesar de poucas universidades do Brasil trazerem a Espiritualidade como disciplina curricular, encontramos estudos que afirmam que médicos ligados à espiritualidade são melhores profissionais, mais atenciosos e dedicados, entendem melhor o sofrimento de seu paciente atuando como agente humanizador da medicina.


Assim como D. Rita nos inspirou com seu exemplo, podemos auxiliar outros pacientes no seu processo de adoecimento ajudando-o a trabalhar sua espiritualidade, da mesma forma podemos sensibilizar outros profissionais a serem mais espiritualizados, desta forma contribuiremos para uma medicina mais humana.


Referências Bibliográficas e Sugestões para Leitura:


GUIMARAES, H. P. e AVEZUM, A. O impacto da espiritualidade na saúde física. Rev. Psiquiatr. clin., São Paulo, v. 34, supl.1, p.88-94, 2007. Acesso em 23 de março de 2021: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832007000700012

SALGADO, M.I. Saúde e espiritualidade. Universidade de Minas Gerais. Nº 1551 – Ano 2006. Acesso em 24 de março de 2021: https://www.ufmg.br/boletim/bol1551/segunda.shtml#:~:text=A%20Organiza%C3%A7%C3%A3o%20Mundial%20de%20Sa%C3%BAde,do%20mundo%20inteiro%20a%20se

 
 
 

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