A medicina além das “fronteiras"
- integralizablog
- 17 de jul. de 2023
- 4 min de leitura
Em mais um dia no rodízio de Clínica Médica, dia 30/09/2022, chega ao consultório Dona Maria (nome fictício), uma mulher que, logo ao eu ver, já percebi uma certa apatia em seu olhar para sua primeira consulta na UBS em que estávamos. Contudo, ainda não esperava tudo aquilo que ainda estava por vir...
O intuito de D. Maria nessa consulta seria mostrar seus exames que foram solicitados por um outro médico da Unidade. D. Maria, durante a conversa comigo e mais dois colegas, primeiramente nos falou sobre suas enfermidades físicas, que, por sinal, trazia para si uma enorme carga para sua tão pouca idade diante ao compararmos à sua fisionomia. Ela, uma paciente com enfisema pulmonar, DPOC, fibromialgia e tabagista desde os 8 anos de idade, se deparava agora com nódulos pulmonares que a afligia com medo de um possível câncer e da morte diante do estereótipo que traz a própria doença.
Ao longo de nossa conversa, de entender seu processo saúde-doença, Dona Maria então começou a desabafar sobre suas enfermidades emocionais e psíquicas, e foi aí então que pude perceber o que de fato a angustiava. D. Maria, uma mãe solo, que teve 5 filhos, mas que perdeu um devido à rubéola durante a gravidez, trabalhou a vida inteira e cuidou desses filhos com unhas e dentes, esquecendo de si ao longo desses anos. Uma mãe de filho autista de 36 anos que ainda é sua única cuidadora, uma vó que cuida de seus netos; além de tudo, a irmã e tia que ampara a todos quando estes precisam.
Mas e quem cuidava, então, dela?!
Durante a nossa conversa, pude notar o quanto aquele momento estava sendo importante para ela... aquele momento de desabafo e de liberação daquilo que a sobrecarrega por tanto tempo. E, assim, ela nos contou que estava tentando parar de fumar, pois já não queria mais e percebeu o quanto tabaco havia feito mal na sua vida. Então, a mesma começou a chorar bastante nos contando o quanto não largar o vício a estava incomodando e afetando sua vida e relação com seus próprios filhos, os quais a criticavam por não conseguir; ou seja, D. Maria também estava sem apoio nessa luta! Chegou a um ponto que a paciente não sentia vontade nem mesmo de ir à igreja, pois sentia vergonha de quando as pessoas a vissem parando para fumar...
Uma das coisas que me tocou nesse caso foi a sua semelhança com a minha realidade, enxerguei em D. Maria a minha própria mãe, também tabagista de longa data que não consegue largar o vício, enfisema pulmonar, DPOC e uso de medicamentos até parecidos com os de D. Maria; além disso, uma mulher também que serve de amparo para toda sua família, mas que não tem em quem se amparar quando precisa.
Enxerguei em D. Maria uma realidade que me fez repensar o quanto, muitas vezes, tentamos ser o melhor para nossos pacientes, indicamos o que fazer, o que melhorar, mas que acabamos esquecendo do que podemos também fazer em casa. Como sempre, tento ao máximo me aproximar do paciente, e com D. Maria não foi diferente. Ela estava nitidamente nos fazendo um pedido de socorro através de outras palavras. Nessa primeira consulta, tentamos mostrar quais os pontos que ela poderia modificar para tomar as rédeas de sua própria vida, colocando a si própria como prioridade. Tentamos mostrar alternativas para a sua alimentação, para a sua sobrecarga emocional e para sua tentativa de cessar o tabagismo (como Reiki e psicoterapia), além de tentar confirmar diagnósticos, já que também havia sido encontrado sangue oculto nas fezes, além de ser detectada uma pré-diabetes. Assim, pedimos que ela retornasse daqui a um mês.
Então, prestes a finalizar o rodízio de Clínica Médica, retorna D. Maria para nosso atendimento mais uma vez, e, confesso que minhas expectativas foram superadas quanto ao que eu estava esperando encontrar nessa nova consulta. Apesar de não ter conseguido fazer os exames que foram solicitados e as consultas com especialistas, D. Maria estava outra pessoa em comparação àquela que vimos pela primeira vez. Uma mulher com uma feição mais alegre e bem mais comunicativa. Perguntei, então, o que havia mudado de um mês atrás até aquele dia... e ela nos contou que mudou sua alimentação, começou a fazer caminhadas no quarteirão da rua em que mora, e agora tentava não fumar um cigarro todo de vez, além de procurar coisas para fazer, a fim de suprimir o vício, conseguindo diminuir 10 cigarros por dia para 8; também nos contou que seus filhos agora a estavam apoiando nessa luta. Além de tudo isso, a mesma nos informou que foi para uma consulta com o odontologista para renovar a sua prótese, além de estar cuidando de seus cabelos, o que para nós representou uma grande mudança, já que as nossas orientações pareciam ter surtido efeito. Isso foi extremamente gratificante, pois percebi o quanto apenas uma conversa pode impactar na vida de uma outra pessoa.
Uma frase que me chamou atenção durante a consulta foi a seguinte: “Disse aos meus filhos que hoje eu não poderia ir, pois meu compromisso era comigo mesma de vir até à consulta hoje”.
Com isso, pude encerrar o rodízio com muita felicidade e gratidão, pois foi nele que pude reacender a chama de quando tentava com todas as forças passar naquele vestibular e lutar pela tão sonhada Medicina. Medicina para mim é exatamente isso: ir muito além do físico, dos exames, entender cada paciente como único e também perceber que às vezes nosso papel pode ser feito com uma simples conversa.
Anônimo
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