A Verdade por Trás de um Sorriso
- integralizablog
- 5 de fev. de 2021
- 5 min de leitura
Atualizado: 15 de jun. de 2023
Sempre julguei a medicina como fonte infindável de histórias. Acho que esse é um dos grandes motivos pelos quais me interessei pelo curso, pois, considerando-me uma pessoa intensa e imbuída de certa urgência de viver, tenho sede de colecionar histórias. De olhar para trás e ver que conheci pessoas e suas mais simples idiossincrasias, peculiaridades. De olhar para trás e ver que estou construindo memórias que só enriquecem e embelezam meu mundo interior que preservo com tanto esmero. De olhar para trás e ver que me entreguei a cada momento vivido. E a medicina, apesar de impor muitas vezes seu ritmo vertiginoso, ainda consegue nos proporcionar tudo isso quando paramos e a saboreamos.
Foi nesses dias que atendi, juntamente com meus colegas, uma paciente com história de depressão. Era uma menina de 17 anos. Assim que ela entrou no consultório acompanhada da mãe, senti a melancolia pairar no ambiente. Era quase palpável uma energia carregada de algo que ia além da dor, uma energia carregada de sofrimento. Sua postura evidenciava uma pequenez adquirida, moldada, esculpida pelas suas vivências e experiências que até então não tínhamos conhecimento. Sua coluna estava arqueada, seus braços em inalterável adução, suas mãos inquietas repetiam incessantemente um movimento tímido e estereotipado. Ela hesitava em manter qualquer contato visual e foi nesse momento que eu me identifiquei. Durante muito tempo também fui incapaz de olhar as pessoas nos olhos e, hoje, sei o quanto o nosso olhar pode revelar. Em seus olhos perdidos, vi que eles não se espremiam quando ela sorria. Seu sorriso era social, forçado. Seu sorriso era uma forma de heroísmo.
A menina insistiu em afirmar que a sertralina tinha melhorado sua tristeza em 9 numa escala de 0-10. Porém, ela ainda relatava ideação suicida recorrente, perda de grande parte da capacidade de sentir prazer, falta de energia e iniciativa para a realização das atividades diárias, se sentia triste todos os dias durante maior parte do dia e ouvia vozes que diziam que ela era inútil e que devia se matar. A consulta continuou e cada vez mais senti a tensão crescer dentro da sala. Havia um silêncio entre mãe e filha que gritava. Algo que as conectava sem exigência de verbalizações. A mãe se mantinha fortaleza desde o início da anamnese. Até que se atingiu o clímax quando foi feita a fatídica pergunta: o que precipitou a depressão? Nesse momento, ambas hesitavam em responder. Segundos de silêncio e olhares se seguiram. A mãe, enfim, com lágrimas correndo em seu rosto, nos revelou que o avô materno da menina abusava sexualmente dela. Seu próprio pai tinha estuprado sua filha. E a menina, de tão pura, ainda confessou se sentir culpada por não ter perdoado o avô em vida.
O sentimento de impotência, tão frequente na medicina, me invadiu. O que dizer ou fazer para amenizar o sofrimento daquelas mulheres? Ambas tinham sido feridas irrevogavelmente. As palavras de consolo que me vinham à cabeça pareciam de uma obviedade ridícula. Teria eu propriedade para aconselhá-las sem nunca ter passado por situação parecida, apenas com o artifício da empatia e sensibilidade? Como preservar a derradeira pureza daquela menina?
Foi, então, com a graça de quem é apaixonado pelo que faz, que nós estudantes articulamos miríades de possibilidades de combate à depressão. Desde o ajuste da medicação até a configuração da playlist matinal. Quando o assunto foi pagode, até sambar dentro do consultório eu sambei, num intuito hipocrático de consolo. Confesso que fiquei orgulhoso. E, assim, com simpatia e bom humor cuidamos do corpo, da mente e do espírito da paciente, que nos retribuiu, ao sair do consultório, com um sorriso verdadeiro, daqueles de olhos bem espremidinhos.
Autoria: Matheus Sanjuan Netis Teles Cardoso
UFS Lagarto
Comentário do Blog:
Agradecemos ao estudante por transcrever e compartilhar essa história. Sua vivência com ela, além de contribuir para o seu crescimento pessoal, pode ajudar outros estudantes que passam pela mesma situação.
Ter contato com o paciente é a grande expectativa do aluno desde que inicia o curso. Sem preparo para esse contato, chega ao quinto período, quando inicia o estudo da clínica propedêutica, esperando que o professor o oriente e, assim, saiba não apenas atender o paciente, mas também lidar com as situações advindas desse aprendizado. Sentimento de impotência, angústia, frustrações, insegurança, dúvidas e medos fazem parte do processo de formação.
A escuta ativa, o olhar sensível, suporte social, abordagem lúdica ou focada na espiritualidade do paciente são algumas estratégias de enfrentamento diante das circunstâncias delicadas que surgem durante o atendimento dos pacientes.
A consulta do adolescente, por si só, é um terreno de grandes desafios. Esse grupo é extremamente heterogêneo, sendo composto de indivíduos que são maturos e desenvoltos; e também indivíduos que são mais introspectivos, de difícil acesso, em que é exigido do profissional um maior malabarismo para conquistar a confiança e assim adquirir informações. Principalmente se levarmos em conta, situações delicadas como maus tratos, abuso sexual, uso de substâncias ilícitas e outros problemas de mesma natureza aos quais esta parcela da população está muito exposta. São em momentos assim que necessitamos de, além do conhecimento técnico, empatia, habilidade de comunicação e estratégias diversas para estabelecer uma boa relação-médico paciente a ponto de receber a permissão para ouvirmos tamanhas confidências de nossos pacientes.
E para conseguir tal permissão, muitas vezes se torna necessário utilizar as mais diversas estratégia de aproximação entre médico-paciente. Talvez você não saiba dançar um samba, como no relato acima. Talvez nem o seu paciente saiba. Mas um comentário sobre alguma banda musical da moda, alguma série de televisão que está em alta ou mesmo apenas o fato de tornar o seu consultório em um ambiente agradável, seja suficiente para transpor barreiras comunicativas.
Por outro lado, também se faz necessário que atentemos para os nossos limites enquanto profissionais. Estamos ali numa posição que exige de nós acolhimento, compressão, aconselhamento, escuta, apoio. Nunca julgamento. Para algumas pessoas ainda pode ser inconcebível que a paciente nutrisse alguma culpa em relação ao seu avô. Alguns se renderiam ao impulso de dizer que ela não deveria desculpar ninguém, que ela está sendo ingênua de pensar assim. E é aí que entra o limite do pessoal e do profissional. Um limite muitas vezes difícil, mas crucial numa situação como essa.
Ademais, destacamos que no relato de hoje, foi feita a observação atenta no encontro com o paciente a ponto de perceber na linguagem não verbal, os sinais do seu sofrimento; além da abordagem com ludicidade, característica que torna a consulta leve e permite a descontração do paciente, ainda que seja com questões seríssimas, principalmente quando se trata de adolescente e ainda com violência sexual, que requer uma série de peculiaridades.
O educador Paulo Freire defende a troca de vivências como possibilidade de que o aluno reflita sobre seu contexto social e amplie sua autonomia e maturidade, características fundamentais à prática médica. Dessa maneira, adotando uma postura proativa ao invés de sofrer e ampliando seus horizontes nas opções de cuidado. Entender que tratar é mais que somente medicar é o nosso grande desafio.
“ O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”
Carlos Drummond de Andrade
E você? Possui alguma história de atendimento em que foi necessário recorrer a estratégias não convencionais para estabelecer a relação médico-paciente? Tem alguma dica pessoal para lidar com consulta de adolescentes?
Compartilhe conosco sua opinião e enriqueça essa discussão.
Sugestões de Leitura/Referências:
1. Consulta do adolescente: abordagem clínica, orientações éticas e legais como instrumentos ao pediatra. Disponível em: <https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/21512c-MO_-_ConsultaAdolescente_-_abordClinica_orientEticas.pdf> Acesso em: 05/02/2021
2. Ludicidade e narrativa: estratégias de humanização na graduação médica. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-55022010000400004&script=sci_arttext> Acesso em: 05/02/2021
3. O aluno de Medicina e estratégias de enfrentamento no atendimento ao paciente. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/rbem/v37n2/03.pdf> Acesso em: 05/02/2021
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