Até onde vai minha fé? Vou suportar?
- integralizablog
- 15 de jul. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 17 de dez. de 2021
Numa manhã nublada de inverno rememoro uma certa vivência com um paciente na graduação, novamente vem as sensações e procuro mais uma vez ressignificar as emoções e interpretações. E reescrevo essa narrativa. Parece que a necessidade exige que ela seja novamente relatada, em tempos de pandemia, quando a maioria das pessoas não aproveitam para refletir o que a doença representa para a humanidade, porque ela surge. Basta só eliminar o agente etiológico? O que o processo do adoecimento nos ensina? Por tanta dor e sofrimento?
Essa história aconteceu num período onde INAMPS, único meio de atendimento público, os que não tinham direito, eram chamados de indigentes. Tem muito tempo isso? Sim e Não, foi em 1980, cursava o terceiro ano do curso de medicina. Atender pacientes só no 4º ano de medicina, não era pelo distanciamento necessário para prevenção da disseminação de uma doença que nos impedia de atendê-los, mas pelo modelo curricular tradicional. Cedi a insistência de uma colega e entrei extraoficialmente no serviço de otorrinolaringologia e cirurgia de cabeça e pescoço, único com vagas para estagiários, com professores, mas não pela faculdade. Assim iniciei minha trajetória. Missão dos estudantes que iniciavam: fazer os curativos dos pacientes que foram submetidos à cirurgias. Sem nenhuma orientação, sem referências, sem preparo emocional para enfrentar essa realidade, “soltas” no hospital, enfrentamos o nosso primeiro contato com pacientes, com patologia de cabeça e pescoço. Os cursos de medicina na sua maioria, apesar das mudanças curriculares, ainda resistem em inserir capacitação para lidar com a subjetividade da vida na formação dos alunos, além do conhecimento técnico. Vivi nesse estágio, uma crise que talvez muitos estudantes passem, perguntava-me: vou suportar?!
De repente, eu estava ali fazendo curativos dos cancros ulcerados ou cirurgiados. A colega já há alguns meses no serviço, sugeriu que fizéssemos curativos juntas, o que acolhi de imediato. Foi assim que cheguei a José, o sobrenome não me recordo, um rapaz de 21 anos, morava num bairro de periferia da cidade, estudava um curso técnico, participava do grupo de jovens da igreja, e tocava violão. Quando o conheci, ele vivia dopado pela morfina para suportar as dores pelo câncer. Diante daquele quadro dantesco, sem esperança de cura, volto aos meus questionamentos centrais: quem somos nós? O que estamos fazendo aqui? Que Deus me ensinaram que permite algo assim. Tenho fé? No que mesmo? As minhas bases foram abaladas, testadas...
Portador de melanoma, câncer de pele, do tipo mais agressivo, a doença tinha levado a necrose da região orbitária e narina esquerda. O olho direito era protuso, também impedia a visão; o tumor já se pronunciava pela narina direita. Ele mal respirava pela boca, respondia mais com acenos da cabeça do que pelos monossílabos roucos que às vezes emitia. Se não bastasse o quadro, a higiene do hospital-escola da faculdade, deixava a desejar; as moscas depositavam no tecido morto seus ovos, e as larvas eram constantes no ferimento facial de José, que retirávamos diariamente durante o curativo. O contexto geral é difícil de adjetivar, eu não conseguia entender e nem aceitar a situação daquele rapaz. Pelo relato das enfermeiras, ao ser internado, com a tumoração menor, ele era gentil, cantava e tocava na enfermaria. Religioso ao extremo, nunca reclamava, exceto quando as dores se tornaram insuportáveis. Sempre vinha o questionamento, por que todo aquele sofrimento em uma pessoa boa? Outros jovens com comportamentos até perversos, e com regalias na vida, era difícil aceitar aquela situação. Chorávamos sempre que saíamos do quarto dele.
Nada do meu aprendizado, até então, me respondia a ponto de ter resignação. Continuei acreditando, apenas, na Força Criadora de tudo que existe e existirá, sempre achei ilógico acreditar no surgimento de tudo fruto do acaso ou do nada. As explicações sobre o sofrimento humano oriundas da religiosidade da família, passei a rejeitar. A crise me fez querer largar a medicina, me achava incapaz. Meu pai se revoltou comigo. Minha mãe e irmã buscavam consolar, pediam para não perder a fé. Que fé? Será que eu sabia o que era isso mesmo? Refleti, naquela altura da vida, a única coisa que me proponha fazer era ser cuidadora de pessoas, não tinha outra opção a pensar, fui buscando resiliência e segui. Um dia a colega comunicou que eu teria que fazer os curativos sozinha, ela não podia vir.
Era domingo, turno da manhã, cheguei à enfermaria e não senti o odor de necrose, procurei o prontuário para ver como José tinha passado a noite, a enfermeira me vendo aflita, respondeu: -- faleceu na madrugada. Prendi a respiração, agradeci à enfermeira pela informação, corri para um local solitário do jardim do hospital, onde desabei no choro. Só que dessa vez o choro era um misto de alívio por ele, por mim, pela colega, pela família dele. Chorei tanto que fiquei com o rosto inchado. Após essa catarse, procurei me conter, tinha que atravessar os corredores do hospital, o que fiz com a cabeça baixa, não suportaria falar com ninguém, sem cair no choro convulsivo.
Foi assim que iniciei a minha busca para compreender o sofrimento humano. Ser mais que apenas empática com os pacientes, não consigo viver com o que não acho justo, buscava explicações aceitáveis e coerentes para o sofrimento para mim. Encontrei respostas que foram despertadas ou construídas, aquietei-me em compreensões e aceitação quase uma década depois, ainda que não sejam as respostas reais a todos os questionamentos, no momento estão me respondendo com nexo, serenam temporariamente meu coração. Tenho consciência que a verdade absoluta não é para esse plano tridimensional que vivemos. O ser humano precisa ainda evoluir muito espiritualmente para atingir os níveis elevados de compreensão da existência humana na sua plenitude. Continuo trabalhando a fé que estou aprendendo como buscar..
Autoria: Maria Suely Silva Melo
Que lindo relato. Não cheguei nesse estado de aquietar-me com aceitação verdadeira que pudessem ao menos temporariamente "serenar" meu coração (usando as palavras trazidas por você... rs). Mas olha, ainda estou na primeira década de pós-formatura e quem sabe aqui não me ajude a encontrar-me, né? Sinto-me cético, mas não queria ser. Não sei o que será de mim! hahahaha Muito gostoso ler seu relato! Grato! ;)