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Cactos dão flores

  • integralizablog
  • 5 de jun. de 2023
  • 3 min de leitura

Dia 16 de setembro dia 2022. Primeiro dia de aula. Primeiro dia de atendimento do meu 3° ano da faculdade. Marcou como nenhum outro. Mudou minha visão sobre a vida e sobre o que devemos dar valor. Mudou meus conceitos em relação a qual é o real papel do médico na vida de uma pessoa. Ao ler os registros anteriores do prontuário, li o relato de: Paciente, sexo feminino, desempregada há 4 anos, namora há 3 anos com a mesma pessoa. Nenhuma comorbidade realmente física era impactante: possui um mioma uterino, mas assintomática e com conduta conservadora. Nada mais, poderíamos pensar que se trata de uma paciente que realmente está em estado de saúde. Será?

Ao ler a lista de problemas da paciente, parecia um caso relativamente simples, só 1 problema na lista? “Que bom!”, pensei, “para primeira paciente está ótimo!”. Mas quando a paciente entra na sala, ela já possui fáceis tristes e de quem estava chorando antes de entrar. Na nossa primeira pergunta “tudo bem com a senhora?”, já veio o choro e a insegurança da minha parte de lidar com o estado emocional e espiritual de uma paciente que aparentemente não tinha nenhum mal físico a comprometendo. Respirei fundo, tentei, sem ser invasiva, perguntar qual era o motivo de tamanha tristeza. Resultado: a filha da paciente de 17 anos havia cometido suicído há menos de 4 meses. Foi no mínimo chocante para mim. E novamente veio aquela sensação de angústia, em como lidar com aquela situação.

Ela começou a narrar sua história de como nos últimos meses não tem se alimentado, não tem saído de casa, não conversa com ninguém, e tem no mínimo 5 crises de choro no dia. Tentamos contornar a situação: “Não há nada que você faça atualmente que possa distrair um pouco?”, só piorou, ela disse que não consegue fazer nada, não deseja fazer nada. Nesse momento, instintivamente e energeticamente (acredito que precisamos desse instinto na Medicina, não conseguimos nunca aprender tudo só ouvindo e lendo), eu decidi perguntar “E o que você fazia antes? O que você gostava de fazer antes?”. Ela abriu um sorriso: “Ah, eu gostava de minhas novelas, de andar de bicicleta e de plantar”.

Foi o suficiente. A partir daí, ela ficou mais leve, falou dos bons momentos que ela teve andando de bicicleta com a filha, plantando cactos porque a filha achava eles bonitos. Partimos daí para uma consulta mais leve para os dois lados, lembrando a ela que a memória que deve permanecer da filha são esses momentos colecionados juntas. Claro, prescrevemos Clonazepam e Sertralina, encaminhamos ao serviço de psicologia, e aconselhamos que ela fizesse atividade física e melhorasse sua alimentação, pois havia perdido 6 quilos desde o evento. Ela também apresentava um desejo de engravidar, o que me tocou, pois com uma perda tão recente e com uma angústia tão grande, nenhum bebê viria bem para esse mundo sem que o corpo e a energia dela estivessem favoráveis.

Dois meses depois, coincidentemente, na minha última consulta desse rodízio de Habilidades, quem atendemos? Ela novamente. Chegou na consulta sorrindo, leve, contando sobre os cactos que voltou a plantar, sobre a sua sobrinha que nasceu nesse meio tempo e sobre como ela tem suprido esse buraco que foi deixado no seu coração. Ficamos felizes em saber o quão ela apresentava estar melhor. E então elas nos contou: nesses 2 meses, seu avô morreu e ela teve um aborto espôntaneo! Foi um choque, achávamos que aquilo poderia ter desencadeado nela uma nova onda de tristeza. Mas não, ela ressignificou aquilo com as palavras ditas a ela na consulta anterior: ela não queria um bebê que sentisse tudo de ruim que ela estava sentindo, e decidiu que iria vir quando estiver no momento e na situação certa.

E foi assim que, com apenas uma paciente muito marcante, eu revi meus conceitos sobre o que é saúde e o que é doença e qual o verdadeiro papel do médico. O que eu faria com o mioma dela? Nada. O que talvez eu tenha impactado, mesmo que minimamente na vida dela? Tudo. Todos os cactos que eu vir a partir de hoje me lembrarão dela e de todo o aprendizado envolvido.

Cactos possuem espinhos, vivem em ambientes inóspitos e veem bastante miséria no nosso sertão, mas brotam flores!

Mesmo na maior seca de todas eles dão flores! E seus brotos se espalham por todo o território.


Ela foi assim, encontrou uma flor dentro dela mesmo nos piores momentos, e me deu um brotinho de si mesma. 

Por fim, nesse mesmo dia, decidi voltar para minha cidade natal e dar um grande abraço em minha mãe, porque mãe, como nenhuma outra espécie, ama seus filhos mais do que tudo. E perder um filho do jeito que ela perdeu, realmente deve ter sido inimaginável a dor.


Sofia Cisneiros Alves de Oliveira

 
 
 

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3 Comments


Aike Teixeira
Aike Teixeira
Feb 22

Muito perfeito!

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Alana Faleta
Alana Faleta
Jun 06, 2023

Lindo e emocionante!

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Carol Sem K
Carol Sem K
Jun 06, 2023

Nossa que história cativante, eu me emocionei de verdade. Temos mais impacto na vida dos outros do que imaginamos

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