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O bem, o mal e o humano

  • integralizablog
  • 24 de dez. de 2021
  • 5 min de leitura

Dentro da medicina, nem anos de graduação, residência, pós-graduação stricto senso e experiência prática irão te preparar para todas as possibilidades quando se trata do ser humano. A vida sempre nos trás experiências pelas quais não estamos esperando e todas, até as mais trágicas, trazem aprendizado (ainda que o aprendizado em si não deva ser obtido a qualquer custo). E nós aprendemos mais com os pacientes do que jamais eles aprenderiam conosco.

À nossa turma fora dada a oportunidade de participar e realizar atendimentos na psiquiatria, na atenção básica de Lagarto. Os sentimentos foram mistos quanto a essa experiência, como não foram as experiências de cada estudante com cada paciente. Do meu ponto de vista, pude observar o ser humano como nunca e ampliar meu olhar para todos os pacientes em seus recortes do mundo.

Neste dia, recebemos um paciente diferente, em muitos dos sentidos da palavra. Acanhado, teve medo de entrar no consultório. Veio acompanhado da técnica de enfermagem, a quem depositava confiança, que pôde nos auxiliar a conhecê-lo. Por trás dos olhos assustados, escondia-se uma história de muito sofrimento, não somente o dele.

Nosso paciente tinha a postura encurvada, um humor deprimido com afeto congruente. Fácies apresentava-se depressiva. Paciente estava lúcido e orientado em espaço-tempo, porém tinha sua cognição levemente rebaixada, visto que estava letárgico. Em aspectos físicos, tinha bom estado geral e sem alterações. No entanto, não era bom o seu estado geral quando se tratava do ser humano como um todo.

Inicialmente nos abordava com um relato de depressão e informando uso de medicação, mas nenhum paciente se resume a uma queixa principal. Neste dia apenas me coube anotar as informações e observar o atendimento conduzido por um colega. Ao passo que investigávamos, iam surgindo detalhes importantes dentro do quadro depressivo.

O paciente era homossexual, vivia um relacionamento conturbado, com muitos traços abusivos. Seu companheiro, muito mais jovem, é mais sociável, interage com muitas pessoas, o que gerava ciúmes no nosso paciente. A família do companheiro utiliza-se do fato deste ser menor de idade para aliciar o paciente, sob a ameaça de denunciar a relação para a polícia, ainda que seu companheiro já esteja na faixa etária considerada autônoma.

Além deste aliciamento, havia outra questão que prejudicava sua situação financeira. No desejo de presentear o namorado, com uma bicicleta e um telefone celular, endividou-se com o banco e com um agiota. Para ambos, continua pagando sua dívida. Por parte do banco, uma cobrança mensal de seu empréstimo. Pelo agiota, fora tomando seu cartão, onde recebe sua aposentadoria (por alegada insanidade). Desta forma, não consegue ter acesso a boa parte de seus rendimentos, dependendo de ajuda financeira dos pais.

O ambiente familiar do paciente, tão tóxico quanto. Seu pai não aceita a sua sexualidade, proferindo inúmeras ofensas ao filho quanto a esse respeito, inclusive renegando-o. Por isso e por outros motivos que viriam à tona mais para frente na consulta. Sua mãe, cadeirante por motivo que não soube explicar, é aquela quem lhe acolhe e de quem ele cuida, sofre tanto quanto ele em ver o filho reduzido a tal estado.

Um outro ponto importante que fora revelado foi um quadro epilético, que estava sendo medicado naquele momento. Revelou ter muito medo de sair de casa, ter uma convulsão e não possuir ninguém para dar-lhe assistência.

Conforme meu colega fora conduzindo a entrevista, uma revelação chocante (para muitos) fora feita: nosso paciente havia sido preso por homicídio. Ainda jovem, residente em São Paulo, envolvera-se com tráfico de drogas, muitas vezes utilizando-as também, como é comum. Em meio a tais condições, ameaçado de morte, alega ter matado seu antagonista em legítima defesa, ainda que tenha estado em reclusão por conta disso.

Após o ocorrido criminal, o início de um quadro similar à esquizofrenia. Relata ouvir vozes, em especial a da pessoa a quem havia assassinado. Delas, emanavam ordens de cometer suicídio, de assassinar seu namorado, de esquartejá-lo... Dizia ter lembranças vivas todos os dias do ocorrido, relatando culpa. Embora algumas vezes lembra-se o fato, ao falar dos confrontos atuais em sua vida.

Esse atendimento ocorreu em uma terça-feira. Na sexta-feira anterior, o paciente havia pendurado uma corda em sua casa para cometer suicídio por enforcamento, mas fora convencido a não fazê-lo pela técnica de enfermagem que o acompanhava. Sabido de seus sentimentos autodestrutivos, implorava para ser internado no CAPS AD. Falava claramente que, caso não fosse internado, não faltariam muitos dias para que cometesse suicídio.

Neste dia, pude aprender, de fato, a enxergar o ser humano de outra maneira. Pude ver este homem literalmente no fundo do poço, dentro de sua realidade. O sentimento depressivo era compreensível, o que não torna os pensamentos destrutivos justificáveis. Tal história pode causar ojeriza aos olhos da maior parte das pessoas, mas neste dia, me transformei, ao passo que tentávamos transformar a vida do paciente.

Na medicina, somos ensinados ética e múltiplas orientações de conduta. Mas somente somos capazes de nos tornarmos éticos quando somos postos à prova. Neste dia, eu e meus colegas aprendemos a despir-nos do maniqueísmo imperante na sociedade, onde tantas vezes reduzimos os humanos aos bons e aos maus.

Em todos nós habita aquilo que há de bem e de mal. Todos temos a nossa própria história, repletas de nuances que nos marcam de formas diferentes. Posto que cada um de nós reage de uma forma diferente, não devemos julgar por certa ou errada a forma como cada um se sente. Compreender o ser humano, dentro do corpo e da vida que habita, não é justificar seus crimes ou defender o indefensável, mas sim reconhecê-lo dentro de sua humanidade e assim cuidar.

Não sou menos humano que aquele homem, mas ao mesmo tempo não sou mais humano por nunca ter cometido atos similares aos seus.

Encaminhamos o paciente para o Centro de Atenção Psicossocial para que fosse internado e cuidado. Por questões burocráticas, nossa professora responsável não poderia medicá-lo, muito menos nós. Então, ainda que tenhamos feito o certo, fica o sentimento de ter podido fazer mais.

Nunca um médico, ou estudante de medicina, estará em paz até que seu paciente melhore. Não sei se um dia reencontrarei esse senhor, mas desejo do fundo do meu coração que esteja melhor. Não me cabe julgamento de justiça, me cabe cuidar dentro de minhas capacidades e minhas permissões.

Ser humano é existir, viver e experienciar , o que há de bom e de mau em nosso mundo. Nenhum de nós está imune do “mau”, assim como nenhum de nós está privado do “bem”. Temos todas as potencialidades, positivas e negativas. O que nos define não é o julgamento de valor, mas sim a existência dentro de nossa essência como ser humano.




Autoria: Mateus Bezerra de Figueiredo



Você já presenciou ou vivenciou alguma situação parecida? O relato acima te despertou algum sentimento que você gostaria de dividir conosco?

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1 Comment


Aike Teixeira
Aike Teixeira
Feb 22

Um dos melhores até hoje.


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