O Caso de Lydice Laila
- integralizablog
- 2 de abr. de 2021
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O caso de Lydice Laila aconteceu no final do ano de 1982. Estava no início do sexto ano de medicina denominado internato. As dificuldades para exercer a medicina pelas condições estruturais do hospital já eram vividas pelos estudantes: atendíamos no ambulatório de Clínica Médica com a supervisão de uma preceptora dividíamos uma sala entre dois estudantes de sexto ano, pela falta de espaço a divisória era feita apenas por um biombo. A demanda de pacientes como sempre imensa, a necessidade de aprender também, e apesar das condições, buscávamos nos ajustar diante das dificuldades.
E o que vivi, com a paciente Lydice Laila, nunca esqueci.
Lydice entra, se senta com muita delicadeza, cumprimenta e cruza as pernas, diante da estudante de sexto ano de medicina. A observação, apesar de já estar com um grau desenvolvido na formação, muitas vezes ainda era insuficiente para interpretar detalhes que só um profissional experiente teria notado. Percebi trejeitos femininos muito acentuados, a voz rouca, mas levava a sério a orientação de não fazer pré-julgamentos, apenas ouvir e depois examinar, identificando os problemas da paciente, e assim fiz.
Lydice relatava o estado febril que vinha apresentando, as vezes acompanhado de calafrios, fraqueza, dispneia aos esforços, perda de peso. Colhendo os antecedentes, informou ser natural e procedente de Pernambuco, estava na cidade apenas há três meses, sem ter onde ficar, ela passava o dia todo buscando o que fazer, e à noite dormia sob o alpendre das lojas, a primeira que fechasse. Nem sempre encontrava algo para se alimentar, vivia mendigando quando começou a apresentar tal quadro, já há mais de quinze dias. Coletados academicamente todos os dados, inclusive histórico ginecológico, epidemiológico e social, explorei um pouco sobre a história familiar.
Comentou que brigava muito com o pai e este a teria expulsado de casa, não entrando em detalhes sobre o motivo, dizia que o pai não gostava dela; enfim convidei-a a deitar na maca para o exame físico, quando me chamou em tom de voz baixo e disse: - Doutora (apesar de ainda não ser formada), não se assuste ao me examinar, eu nasci do sexo masculino, mas sou uma mulher na essência.
Surpresa com a revelação, perguntei sobre a história de menarca (primeira menstruação), catamênios (ciclos menstruais) e tudo mais que tinha me relatado. Ela, com a expressão de preocupação pelo que eu iria fazer e pensar, respondeu que havia inventado todos os dados por receio da outra paciente que estava sendo atendida no mesmo espaço pelo colega com quem eu dividia o consultório. Resolveu me alertar antes do exame físico para não me assustar, assim se justificou. Tive que refazer toda a anamnese. Agora relatando realmente os antecedentes que incluíam o uso de estrogênio para aumentar as mamas, a expulsão do pai por não aceitar sua identidade de gênero diferente do sexo biológico, por isso viera para a Bahia procurar emprego, mas não tinha conseguido nada, e o restante da história era verdadeiro. Estava diante, no início da década de 80, quando não se abordava na academia e nem davam informações sobre as pessoas trans, e que desafio estava diante de mim trabalhando num hospital de origem religiosa.
No exame apresentava o relato de febre prolongada associados a outros achados no exame físico, sendo necessário afastar entre as suspeitas diagnósticas a endocardite, e para isso necessitava ser internada para investigação.
Levei o caso à preceptora, que ficou apreensiva com o relato que fiz, e o problema agora era onde interná-la, na ala masculina ou feminina? Diante do impasse e da discussão que isso gerou a própria Lydice explicou que mentira inicialmente porque as consultas estavam sendo realizadas na mesma sala com outra paciente, receava que a mesma não compreendesse o problema dela, mas diante da necessidade de internamento ela queria sugerir que a colocassem na enfermaria feminina, pois conquistaria as outras pacientes facilmente, já que sabia depilar sobrancelhas, cuidar de cabelos e outras atividades de salão, isso as faria aceitá-la tranquilamente, e o mesmo não conseguiria na ala masculina, onde poderia inclusive ser agredida. Levamos a questão à direção do hospital, que apesar da resistência inicial acabou aceitando a sugestão por nossa insistência.
E lá foi Lydice Laila para a enfermaria feminina após tanta discussão.
No dia seguinte, chegando muito cedo ao hospital, vi uma fila no corredor formada de funcionários que queriam conhecer a Lydice; desbaratei a concentração de curiosos, fui examiná-la na enfermaria quando de fato o que ela dissera estava acontecendo: em apenas uma noite já conquistara a simpatia das outras companheiras, inclusive com uma intimidade que parecia ter dias de convivência.
Com o tempo a investigação afastou a hipótese de endocardite, a infecção foi resolvida, e a anemia intensa pela subnutrição foi a causa do sopro; melhorado o quadro, ela teve alta, foi orientada a retornar para sua cidade natal e assim saiu, agradecendo todo o acolhimento que recebeu naquela unidade hospitalar que acabou sendo seu albergue, seu repouso, onde obteve mais que alimentos e medicamentos, recebeu atenção e carinho; saiu expressando sua gratidão e chorando pela saudade que sentiria de todos.
Nunca me esqueci de Lydice Laila, que por sua própria experiência, sofrida no duelo pessoal da busca de sua identidade, já tinha passado por todo o tipo de descriminação agressão, soube superar as adversidades e propor soluções para seu problema.
Com situações médicas e não médicas, o profissional ao longo de sua carreira se depara constantemente. Toda experiência enriquece a sua conduta, desperta mais ainda sua sensibilidade, seu olhar mais amplo para as necessidades humanas, buscando atuar com o coração aberto, e não se fechando para o seu semelhante.
Maria Suely
Comentários do Blog:
Os estudos de gênero e as experiências vivenciadas por travestis e transexuais, mostram que a concepção binária de gênero tão presente em nossa sociedade não é natural. Na verdade, trata-se de algo constituído culturalmente. Instituições como família, escola, religião, trabalho e saúde costumam ser heteronormativas.
Muitos debates giram em torno de tal tema no intuito de permitir que cada vez mais pessoas alcancem sua felicidade plena e não sofram com o preconceito que ainda assola a sociedade.
Apesar da narrativa ser de um atendimento durante a década de 80, a reflexão proposta por ela, espelha situações que vivemos ainda hoje, na “era da desconstrução e da informação”. A resiliência e coragem presente em Laila a fez buscar por seu direito universal de saúde em uma época em que nem o SUS existia.
Nos últimos anos foram formuladas políticas e programas específicos de atenção a estes segmentos no Brasil, constituídos como estratégias para garantir a equidade do acesso desses grupos à saúde e, consequentemente, reduzir a vulnerabilidade a qual estão submetidos. Dos programas de saúde destinados às pessoas trans, o que talvez tenha maior destaque é o Processo Transexualizador no SUS, implementado em 2008, por meio da Portaria nº 457, por ser o primeiro a ter financiamento do SUS para a realização dos procedimentos de modificação corporal. Em 2010, foram regulamentadas a hormonioterapia masculinizante, a mastectomia, histerectomia e anexectomia bilateral. Em 2013, houve a possibilidade de habilitação multiprofissional em programas ambulatoriais destinados ao atendimento de travestis e transexuais. O programa já foi implementado em muitos estados com resultados positivos que reiteram a importância de estarmos atento/as às peculiaridades desta população.
O respeito ao uso do nome social amplia o acesso aos serviços de saúde, garante cidadania e diminui os efeitos de vulnerabilidade em saúde a que estão expostas, pela desinformação e exclusão decorrentes do preconceito e discriminação.
Você está preparado para orientar os/as usuários/as transexuais e travestis?
E seus colegas de equipe, também estão preparados?
O que podemos fazer para melhorar nosso trabalho e a saúde de travestis e transexuais?
Sugestão de filme:
Indianara (2020)
Revolucionária por natureza, Indianara Siqueira lidera um grupo de mulheres transgênero que lutam pela própria sobrevivência em um lugar tomado por preconceito, intolerância e polarização. Desde disputas partidárias até o puro combate contra o governo opressor, a ativista de origens humildes passou por uma longa trajetória até se tornar ícone do movimento.
Questão de Gênero (2013)
Produzido pelo Coletivo Catarse, o documentário dá voz justamente para homens e mulheres que decidiram lutar pelo direito se se reconhecerem como de fato são. Sete pessoas compartilham experiências, dramas, conquistas e perdas ao longo do processo de transição de um gênero para o de fato adequado às suas vidas.
Sugestão de leitura:
“Saúde LGBTQIA + Práticas de cuidado transdisciplinar”
Lançado em fevereiro de 2021, pela editora Manole em parceria com a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, é o primeiro livro brasileiro a tratar de forma abrangente temas pertinentes à saúde e comportamento das pessoas LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersexo, assexuais e todas as demais variedades da sexualidade humana), em linguagem direta, sem meias palavras e sem deixar de contemplar aspectos técnico-científicos que regulam a realidade deste público.
“Viagem Solitária – Memórias de um Transexual 30 anos depois”
Editora Leya Brasil, 2011. É um livro autobiográfico que conta a história de João, que no final da década de 1970 fez uma cirurgia de mudança de sexo. Foi o primeiro homem transexual operado no Brasil. João conta sua infância reprimida, a adolescência solitária, as dificuldades amorosas, a possibilidade do exercício profissional como psicólogo, as dificuldades jurídicas quanto ao seu novo nome, os quatro casamentos e a paternidade
Emocionante! É reconfortante comprovar nesse relato do caso da Sra Rita, como a resignação , a aceitação dos fatos da vida nos dão recursos espirituais para irmos superando as dores do dia a dia e, a despeito de toda a dor moral, conduzirmos sem revolta a nossa existência.