O propósito dos encontros
- integralizablog
- 19 de jun. de 2023
- 4 min de leitura
63 anos. Esse é o tempo de vida de Sr. Gabriel (nome fictício), tempo este que forjou a experiência que vi entrar pela porta do consultório acompanhada de um sorriso, naquele que parecia apenas mais um dia de atendimentos e aprendizagem. Eu particularmente não estava bem nesse dia... cansada, terminava aquela sexta-feira à tarde como quem procura sentido, embora o recebesse com um sorriso e um “boa tarde” animado que não deixara transparecer este sentimento. Vi entrar um homem hígido que, apesar de estar retornando ao consultório para trazer exames solicitados em uma consulta anterior a fim de investigar dores que “andavam tirando sua paz”, apresentava-se animado, relatando ele mesmo o que sentia e respondendo às minhas perguntas, já que eu não havia participado de sua primeira consulta (tratava-se do nosso primeiro encontro). Disposto, Sr. Gabriel respondia do seu jeitinho a cada uma das perguntas que eram feitas ora por mim, ora pelas colegas de turma que dividiam comigo essa missão e que já tinham tido o prazer de conhecê-lo. Seguíamos, e enquanto o ouvia falar, eu lhe enxergava. Sim, enxergava! Procurava ver o que cada marca do tempo em sua face queria me dizer, enxergando as entrelinhas e o que suas informações carregadas de significado, embrenhadas em cultura e em um sentido figurado pareciam esconder. Sim, parecia que ali estavam muitas das respostas que nós estávamos procurando. “Dor no osso, minha fia. Em todo canto. Nas juntas não, é por dentro em tudo o que tem osso” - disse Sr. Gabriel. Enfim, aquele primeiro relato parecia nos afastar da suspeita inicial que sugestivamente direcionara a problemas reumatológicos.
Resolvi retomar ao início, disfarçadamente como quem não pergunta nada muito relevante, quis sentir eu mesma algumas das coisas que eu já havia lido em seu prontuário. Ali, naquele retorno, ouvi Sr. Gabriel falar do “seu sentido”. Acordar cedo, “ir pra lida”, fazer ele mesmo suas atividades, tomar conta de sua vida. Ouvi-lo falar me levava a uma certeza: em meio às dores, tocar a vida era o que o mantinha vivo, disposto e sedento pela vida. Cuidar da vida era o que dava sentido à vida! Ele queria tirar as dores para seguir a vida e não “tirar a vida” para se livrar das dores. Isso era sim uma coisa muito importante a ser considerada em seu plano de cuidados. O caminho, no entanto, estava apenas começando, afinal de contas suas dores muito inespecíficas pareciam vagar desconectadas. Era preciso ir mais longe, este precisava ser um novo encontro.
Em sua primeira consulta, no entanto, um infarto antigo havia sido citado, silenciado talvez por aquela figura ativa e firme que estava à nossa frente. Sr. Gabriel se apresentava como quem sabe o que quer, o que tem e do que quer se livrar, assim, buscando centrar o atendimento nas necessidades do paciente, naturalmente as dores tinham sido o foco. Retomamos então ao infarto, ocorrido há 5 anos e que aparentemente o teriam levado ao que entendemos ter sido uma parada cardíaca: “Perdi o fogo (sic, leia-se fôlego), caí lá e me animaram, minha fia. Aí voltei”. A filha, presente em nosso encontro e que até então estava em silêncio (talvez porque seu pai, não parecia ser um homem que se deixava conduzir), confirmou as informações e referiu ter sido este também o relato do médico. A história ia então ganhando novas linhas que se conectavam; Sr. Gabriel, fumante desde os 15 anos, hipertenso, sofrera um infarto e seguira a vida, para nossa surpresa, sem acompanhamento de um cardiologista. À ausculta, um pulmão que não refletia tantas aventuras e um coração que chamou minha atenção: tínhamos um coração que, sedento pela vida, apresentava uma nova bulha, sopros e frêmitos, ainda que normocárdico, compensações estas que o ajudavam a seguir a vida em aparente normalidade. Além disso, uma nova porta parecia se abrir: seu fígado, ligeiramente aumentando, ligara para nós um novo alerta. Voltamos ainda à dor e, nessa caminhada em busca de respostas, nos deparamos com a presença de inúmeros pontos sensíveis, nada que não pudesse ser justificado por um trabalho que exige força e resistência física.
Por fim, percebi que abrimos uma porta que estava nos levando a um caminho diferente do inicial que nos foi conduzido pelo próprio Sr. Gabriel e por aquilo que se vê. Seguíamos agora pelo caminho que não se vê na superfície, mas na profundidade dos encontros. À essa altura, eu já não lembrava mais do dia difícil, afinal de contas meu “momento presente” com Sr. Gabriel me levara, sem que eu percebesse, aonde eu queria estar. Seguimos com um completo exame físico que, integrado profundamente a uma anamnese ampla, passeava por nosso paciente de forma integral. Sua saúde passava por seus sentimentos em relação à vida, mas infelizmente também refletia consequências de velhos costumes: fumar parecia não ter passado tão despercebido ao seu corpo quanto ele achava e como desejávamos nós. Existiam suspeitas sérias, novos exames e novos encontros seriam necessários, e algumas mudanças de hábitos também. Agora, Sr. Gabriel, homem atento e inteligente em sua simplicidade, percebera em nossa atenção preocupações que iam além de suas “dores visíveis”, mas ele percebera também que não estava mais só.
Nosso encontro havia aberto muitas portas, não só para ele, mas certamente para mim.
A beleza do cuidado integral conecta a saúde da alma, do corpo, das famílias, mas antes de tudo reflete a beleza dos encontros.
Ao permitir que eu o tocasse, Sr. Gabriel permitiu que eu tocasse em meu propósito e me reconectasse com o que certamente dá e dará sentido à minha vida: me conectar com pessoas.
Juliana Santos Teles
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