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O que esconde um olhar?

  • integralizablog
  • 12 de mar. de 2021
  • 6 min de leitura

Atualizado: 17 de dez. de 2021


Para os atendimentos nos dividimos em duplas, fiquei com Melinda. Ao pegar o prontuário , ouvi a professora falar que era um caso bem interessante, estava bem ansiosa para saber do que se tratava e como seria se sucederia a consulta.

Entramos na sala, nos acomodamos e chamei o Sr. Pedro. Ele veio um pouco apreensivo, abri um sorriso e dei ‘’bom dia!’’ e ele me retribuiu com um ‘’bom dia’’ sorridente, mas o olhar meio preocupado, então, seguimos para sala. Explicamos a ele que éramos estudantes e como seria o atendimento. O Sr. Pedro prontamente nos interrompeu e disse que já sabia como era, pois já tinha sido atendido por alunos. Ele pareceu bem disposto, mas mantinha um olhar preocupado e ansioso.

Pedimos permissão para ler o prontuário e iniciamos a leitura. O prontuário tinha inúmeras folhas e fiquei apreensiva... HAS? DM? DRC? * Questionei-me o que levaria a um acompanhamento tão longo. Com o passar das folhas descobrimos um pouco mais sobre ele: Pedro, 49 anos, católico, viúvo. Traz como queixa principal, desde seu primeiro atendimento, a sensação de “bactérias ou vermes” andando e mordendo em sua pele, o que levou a um prurido intenso, vermelhidão e, posteriormente, o aparecimento de nódulos.

Admito, fiquei bem confusa e apreensiva. Para mim, psiquiatria/doenças psiquiátricas são bem difíceis e que me trazem muita apreensão por não saber se conseguirei ser suficiente para abranger as queixas e situações do paciente. Notei que Melinda também tinha ficado um pouco apreensiva. Mas, enfim, respirei fundo e segui lendo... afinal, como Luzia, nossa professora, havia dito uma vez “não escolhemos o paciente que chega”. Conclui que tudo que poderia fazer era dar o meu melhor e tinha certeza que Melinda daria o melhor dela também.

Ademais, no prontuário do Sr. Pedro relatava que ele tinha uma relação conflituosa com um dos seus filhos que se encontrava na penitenciaria. Uma outra coisa me chamou bastante atenção no seu prontuário: um relato onde ele dizia ouvir vozes que davam ordens para ele. Respirei mais uma vez... entre uma lida e outra olhava discretamente para o Sr. Pedro e ele me retribuía o olhar com ansiedade e sorria. Após isso, iniciamos o atendimento de fato... Quando questionado sobre o motivo da consulta, ele disse que tinha vindo para entregar o exame que a Dra. Luzia tinha pedido, uma ressonância. Relatou também bastante descontentamento com o SUS, pois, se esperasse pelo mesmo [para fazer a ressonância], demoraria meses.

Melinda iniciou perguntando se suas queixas tinham melhorado. Quando acabamos de perguntar, ele disparou diversas queixas em pouco tempo: coceira, vermelhidão, amarelidão nas mãos, sensação de bactérias mordendo a pele, ardor na língua, dor na região epigástrica até o início da área pélvica e a dor no pescoço se mantinham... Melinda e eu nos entreolhamos com um pouco de desespero, mas seguimos a consulta detalhando uma coisa por vez, começando pelo que mais o incomodava.

Lá para o meio da consulta, questionamos o Sr. Pedro das vozes que constava no prontuário, pois, ele não tinha citado tal fato. Ele relatou que não escutava mais as vozes de ordem e disse também que as vozes mandavam-no fazer coisas como: jogar o carro ou a moto em cima de pessoas passando na rua. Fiquei bastante assustada no momento e tentei ao máximo não transparecer esse sentimento.

Percebi em meio a consulta que o que afligia o Sr. Pedro, muito provavelmente, não tinha origem física, assim como constava no seu prontuário. Mas ele trazia uma necessidade de ter um diagnóstico de doença física... e eu sentia que não era algo que poderíamos dar a ele. Durante a consulta, O Sr. Pedro mostrava querer encobrir o que sentia, sempre dava um jeito de desviar a conversa quando perguntávamos sobre sua vida. Mas, apesar disso, nos contou do filho que estava preso, da morte precoce da esposa que foi o amor de sua vida e do relacionamento conturbado que teria terminado recente.

Já no fim da anamnese, o Sr. Pedro disse que tinha trazidos exames antigos. Colocou na mesa duas pilhas de exames de 2007 até o ano atual (2019). Fiquei um pouco desesperada, confesso. Abri a Ressonância, nada. Vi os exames mais recentes, nada. Nos mais antigos, nada. Mas, o Sr. Pedro insistia em perguntar: “Não deu nada? O principal que poderia me dizer o que eu tinha... Nada?” Fizemos o exame físico e nenhuma alteração foi encontrada. Conversamos com o seu Pedro enquanto aguardávamos a professora passar o caso. Quando Luzia entrou na sala ele tornou a questionar o exame. E uma tristeza tomou conta do olhar do Sr. Pedro... nada tinha sido encontrado.

Luzia começou a conversar com o Sr. Pedro, evidenciando que ele precisava aceitar que o problema dele não é um problema físico. Disse para ele ser feliz e construir a felicidade dentro dele, mesmo com as adversidades da vida. Também citou que não podemos nos vitimizar frente aos problemas, é preciso reagir. Sr. Pedro me pareceu bastante resistente durante toda explicação da professora, mas ao final concordou em fazer o acompanhamento com o psicólogo da UBS e o tratamento medicamentoso.

Nos despedimos. Ao sair do consultório vi seu Pedro tentando marcar o psicólogo, isso me deixou muito feliz. Já na aula da tarde passamos os casos, e Luzia relatou que ele tinha contado a ela em consultas anteriores que tinha sofrido abuso na infância por um tio.

Fiquei paralisada. Espantada. E me fez refletir, que ali em minha frente na consulta, os olhares do seu Pedro escondiam uma dor e uma tristeza imensa.

No fim, aprendi com a consulta e com a professora Luzia que:

“Uma conversa muitas vezes tem mais poder de cura mais do que um papel ou um remédio”.

*HAS: Hipertensão Arterial Sistêmica

DM: diabete melitus;

DRC: Doença renal crônica

Karoline Alves de Almeida


Comentário do blog:

A Anamnese é um dos maiores desafios dentro do atendimento médico. Ainda na faculdade, somos expostos a extensas aulas de semiologia, aprendemos técnicas e protocolos para realizar, com a maior eficiência possível, essa parte fundamental do atendimento. No entanto, nenhum texto teórico é capaz de nos preparar completamente para a prática da medicina. Durante a vida acadêmica e profissional encontramos, e encontraremos, mais do que diferentes patologias: diferentes pessoas. Pessoas que não podem ser encaixadas em nosso protocolo determinado durante as aulas. Está aqui a importância e a verdadeira essência de uma boa anamnese: saber ouvir e compreender o paciente.

Assim como o Sr. Pedro só precisava ser ouvido e acolhido, diversas Marias e Pedros chegarão diariamente aos nossos consultórios precisando que coloquemos não só o nosso lado médico tecnicista em prática, mas também o lado médico humano. O lado médico que sabe enxergar, ouvir e acolher por trás de um olhar triste e uma ansiedade que vai muito além de uma enfermidade.

As doenças psiquiátricas trazem à tona, muitas vezes, a incapacidade que temos de compreender e controlar tudo a nossa volta. Dissecamos corpos humanos há anos, mantemos estruturas conservadas em formol e observamos cada mínima parte e detalhe anatômico que possuem. Procuramos respostas exaustivamente: decoramos o mecanismo neurobiológico da depressão, as disfunções que levam a ansiedade. E mesmo assim, diante de tanto estudo, livros imensos e milhares de medicamentos, somos incapazes de fazer o Sr. Pedro ir para casa livre daquele olhar marcante e sorriso ansioso. E diante, dessa incapacidade, como podemos, então, salvar as vidas que tanto desejamos? O que faremos diante do olhar de um paciente que espera, ansioso, que o jaleco branco que vestimos seja uma capa mágica e nós, super-heróis, que resolvam o problema de forma muito mais prática do que podemos?

Talvez seja a conversa, uma atitude tão simples e primitiva, a ação que empolgou nossos pais há tantos anos atrás quando falamos pela primeira vez de forma confusa o início de uma palavra, uma luz para os nossos problemas. Talvez seja a conversa humana, acolhedora e atenciosa a forma mais eficiente para salvar as vidas que desejamos. Para concluir, gostaríamos de deixar uma reinterpretação de alguns versos de Fernando Pessoa feita pelo Dr. Celmo Celeno Porto:


‘’Para ser médico, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui

(Nem o consciente, nem inconsciente

Nem o racional, nem o emocional)

Sê todo em cada caso

Põe quanto és

No mínimo que fazes

(Seja o exame clínico ou um transplante cardíaco)

Assim em cada paciente a medicina toda

Brilha, porque alta vive.’’


Sugestão de leitura:

  • A Arte Perdida de Curar, Bernard Lown

 
 
 

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