O sofrimento e a realização biográfica
- integralizablog
- 10 de jul. de 2023
- 3 min de leitura
O relato que irei descrever trata-se da minha primeira experiência de atendimento fora do ambiente hospitalar e também meu primeiro contato com o Método Clínico Centrado na Pessoa. Além de mim, havia meu colega de turma que acompanhou tudo de perto. Espero que esse relato reforce a importância do olhar humano, que considera nossa integralidade, diante das pessoas que procuram nossa ajuda.
De início, a expectativa que tínhamos é que fosse tudo calmo e tranquilo, não havia motivo para ter pressa e muito menos desespero. Chamarei nossa paciente de Catarina. Antes de tudo, demos uma breve lida na lista de problemas de seu prontuário e fomos chamá-la. Ela entrou rapidamente, sentou e enfatizou que queria que tudo fosse breve, pois estava sem almoçar e precisava tomar seus remédios. De fato, nesse momento caiu por terra a ideia de que atender na Atenção Primária à Saúde (APS) é sempre uma situação em que a maioria das variáveis estão ao nosso controle. No fundo, sabíamos que não era assim, mas, às vezes, é preciso que a realidade se imponha para relembrar-nos de como as coisas são. A princípio, o motivo da consulta era a renovação de algumas receitas, fato que poderia ser concluído em questões de poucos minutos. Entretanto, essa forma de abordagem é muito rasa e frequentemente prejudicial.
Diante disso, vamos ao mais importante: quem é Catarina e por que ela ainda precisa de medicamentos? Catarina é psicopedagoga, professora, palestrante, adventista, solteira e tem 47 anos. Além disso, Catarina relata que sua rotina era bastante cansativa, pois trabalhava muito, inclusive aos finais de semana e em períodos noturnos. Entretanto, desde 2020 ela deixou de trabalhar por ter adquirido transtorno depressivo e transtorno de ansiedade. Ela reforça que a pandemia do COVID-19 contribuiu para que isso acontecesse. Além da depressão, Catarina tem episódios de agressividade, ideação suicida, choro intenso e de alucinações, em que escuta vozes que dizem para que ela mate seus familiares e a filha do pastor de sua igreja (ela refere que teve conflitos com a mulher do pastor). Catarina reforça que toda essa problemática repercutiu na relação com sua família e impediu que ela voltasse a trabalhar. Além disso, ela também tem endometriose, aderências intestinais e dor lombar. Em resumo, a vida de Catarina era boa, pelo menos aparentemente, até que tudo começou a dar errado e a rotina do trabalho foi substituída pelo drama dos transtornos psiquiátricos.
A história de Catarina é um dos vários exemplos de como a vida pode exigir de nós uma resposta que coloque novamente nossos ideais de vida no eixo de nossa biografia, mesmo em situações aparentemente contrárias ao nossos objetivos de vida. Ou seja, é transformar a adversidade, a tragédia, a miséria em oportunidade de realização pessoal. É transformar a cruz em ressurreição. Aqui não devemos ser como um bobo alegre que irá dizer que tudo dará certo no final, mas também não devemos achar que tudo está perdido. Fé, alegria e otimismo, mas não a estupidez de fechar os olhos à realidade.
As receitas que ela pediu no início da consulta foram renovadas. Se você está atento, acredito que já se convenceu de que a abordagem de renovar as receitas sem conhecer a pessoa e mandar o paciente para casa não é a melhor forma de exercer a medicina.
Contudo, o entendimento de sua história fez-nos pensar que talvez a leitura de um livro que abordasse sua situação de vida fosse útil, pois ela gostava de ler livros e é psicopedagoga. O livro escolhido foi o "Em busca de Sentido" do Viktor Frankl. A ideia central da escolha foi justamente trazer para ela vivências de pessoas que enfrentaram situações de sofrimento e de falta de sentido, bem como que isso trouxesse ferramentas para que ela mesma conseguisse transformar a tragédia em triunfo biográfico, isto é, converter o sofrimento em conquista humana. Se você esforçar-se um pouco, vai conseguir encontrar vários exemplos de como isso é possível. Se você é cristão, como Catarina, pode lembrar do próprio Cristo, mas poderá lembrar também de exemplos humanos. Por fim, além de novas receitas, acho que conseguimos trazer um pouco de esperança. Eu falei um pouco de esperança, pois isso já é o suficiente para um bom começo, o resto se consegue com trabalho, perseverança, longitudinalidade e integralidade do cuidado.
Mateus Dias Carregosa
Cada leitura dessas postagens, paro reflexiva e feliz pela beleza do relato desses encontros, onde vai além da objetividade do atendimento, mas busca atingir a alma do consulente e do consultor. São encontros mágicos relatados com profundidade, que se todos lessem ao menos esses relatos, aprenderia tanto, e perceberia em cada historia o quanto nada sabemos, e o quanto precisamos aprender, e vivenciar, para sermos profissionais integrais , médicos de pessoas e de suas almas também.