Os poderes da proatividade e da humanização
- integralizablog
- 14 de ago. de 2024
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Em mais um dia de atendimentos como qualquer outro (ou não…) em uma Unidade de Saúde da Família (USF), eu e mais dois colegas ficamos responsáveis por atender a paciente dona Maria (nome fictício), uma idosa e diabética insulinodependente, acompanhada por uma das suas filhas, a qual estava super preocupada com os mais diversos problemas dela, e que não eram poucos, além, claro, de para com a sua mãe, que estava tendo diversos episódios de hipoglicemia durante a maioria dos dias. Desde a entrada na sala de atendimentos, a filha da dona Maria demonstrou extrema insatisfação em sua mãe ser atendida pelos três acadêmicos que ali estavam, chegando ao ponto de nem olhar na nossa cara. Naquele exato momento criou-se um clima presumidamente desagradável dentro daquela pequena saleta... Um olhando para o outro com vistas preocupadas a cada frase que a filha falava sobre não concordar com o nosso atendimento.
Nesse contexto, a única coisa que eu pensava era o porquê aquilo estava acontecendo, pois estava me sentindo um pouco mal, confesso. Será que ela estava “errada” em estar nos tratando daquela forma? Não sei, talvez. Contudo, fato é que lembrei, instantaneamente, de uma frase ensinada por uma preceptora durante o ano letivo anterior, a respeito de como conduzir casos como este: “seja sempre proativo e nunca reativo”. Assim, eu e os colegas começamos esclarecendo o nosso papel ali naquele momento, até porque ela não tinha obrigação nenhuma de presumir isso. Ademais, a partir deste esclarecimento ela começou até a olhar para a gente e até se sentou na cadeira, algo inédito até então, apesar de ainda estar desconfiada e impaciente, um grande passo para nós, acredite. Com o andar da consulta e conhecendo a história da paciente e da sua filha que além da sua mãe, tinha filhos, esposo e netos que também eram dependentes dela... Agora dá para entendê-la? Tirem as suas próprias conclusões.
Adentrando nesse processo de conhecê-las, descobrimos que a paciente possuía uma diabete bastante agressiva, com variações extremas de picos hipoglicêmicos e hiperglicêmicos, apesar de seguir as medidas não farmacológicas e farmacológicas do especialista que já a acompanhava, resultando em diversas idas à UBS por conta disso, o que já tinha deixado dona Maria com sentimento de ser “incapaz” e que apenas estava sofrendo na vida (sic), chegando inclusive a chorar durante a nossa avaliação. A filha, por sua vez, estava bastante preocupada e cansada devido o tanto de problemas em sua vida, os quais ela preferiu não relatar, mas fato é que ela nunca pensava nela, sempre colocando o outro em primeiro, segundo e terceiro plano. Naquele momento, a filha da dona Maria já estava muito mais calma e confiante na gente, relatando inclusive que nunca a perguntaram nada sobre o seu contexto sociocultural.
A consulta prosseguiu e com ela veio a possibilidade de superdosagem da insulina aplicada, além da técnica inadequada durante a aplicação a partir da discussão com o preceptor, mas tínhamos outro entrave: a aplicação era feita pela outra filha dela. Tendo em vista esse contexto, explicamos toda a necessidade de termos essas informações antes de definirmos qualquer conduta. Dona Maria e a filha pareciam entender parcialmente aquele tanto de informações e, por isso, escrevemos um receituário com todas as orientações para a consulta seguinte, o que claramente as deixaram mais aliviadas. Ao final da consulta, a filha da dona Maria pediu perdão por todas as palavras ditas, relatando que nunca tinha sido atendida tão bem, com tantas explicações e preocupação da nossa parte para com ela e com a sua mãe, prometendo-nos um presente ao final da consulta, o qual ela fez questão de ir buscar naquela mesma manhã – um livro bíblico distribuído pela Igreja que ela frequentava, seu maior e único meio de apoio. Este foi o meu primeiro presente advindo de pacientes em meu percurso na medicina até então (quem diria!).
Por fim, fecho esta narrativa ressaltando a importância da proatividade e da humanização para com o paciente, independente da situação. Aprendemos na sociologia que somos produto do ambiente em que vivemos e por que na medicina seria diferente? Entender o meio onde esse paciente está inserido é de suma importância para definirmos as causas e consequências sobre o seu processo de saúde-doença, além fortalecer a relação médico-paciente, um processo dinâmico. Em resumo, a palavra que eu usaria para definir este atendimento com certeza é orgulho, meu e dos colegas, onde em sintonia conseguimos reverter a situação e oferecer o nosso melhor para aquela paciente tão frágil e a sua filha tão sobrecarregada, pois acredito que esse deve ser o papel de qualquer pessoa que escolha trilhar o caminho dos cuidados em saúde da população, ser um agente ativo e que se preocupe em dar conforto ao seu paciente, enxugando, quando preciso, as suas lágrimas de medo, insegurança e sofrimento.
Rafael Oliveira Bispo
Palavras-Chave: Empatia, Autocuidado, Escuta qualificada
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