Paciente muito jovem para isso tudo
- integralizablog
- 3 de jul. de 2023
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Muitos atendimentos na Unidade de Saúde me fizeram encher os olhos e mostrar que estou indo no caminho certo, mas o da jovem Priscila (nome fictício) foi especial; muito se fala sobre a saúde mental, mas este tema ainda assim é um tabu. Com essa paciente, eu pude comprovar o ditado de que “quem vê cara não vê coração”.
Priscila, 16 anos, mora com o pai, evangélica e está no primeiro ano do ensino médio em uma escola nova. Chega ao consultório acompanhada do pai com várias queixas, incluindo dispepsia, diarreia há mais de 15 dias, dores de cabeça frequentes, insônia há 1 ano e falta de apetite, além de solicitar um encaminhamento ao psicólogo. Ao colher as informações sobre ela, pudemos perceber que a insônia estava atrelada à separação dos pais, que ocorreu há 1 ano e 6 meses. O pai demonstra ser extremamente atencioso e preocupado com a filha, e enfatiza que os hábitos alimentares de Ester são insuficientes (pois come muito pouco), relatando que certa vez passou mal na escola porque não se alimentou.
Por se tratar de muitas queixas, eu e minha dupla precisávamos organizar a história de maneira que conseguíssemos extrair os principais pontos de cada uma. Conforme íamos conversando com Priscila e seu pai, ela sempre enfatizava as queixas, mas negava a falta de apetite ao reafirmar que comia o suficiente para sentir-se satisfeita.
Com o passar da consulta e ao extrairmos os principais pontos, solicitamos ao pai que esperasse do lado de fora para que pudéssemos conversar a sós com a paciente. Esse momento foi inicialmente desafiador, pois estávamos com medo de o pai negar ou ficar incomodado com tal pedido, afinal, a maioria dos pacientes que eu já havia atendido eram maiores de idade e muita das vezes não vinham acompanhados. Contudo, o pai mostrou-se bem compreensivo e retirou-se da sala.
Com a saída do pai, a paciente ficou mais à vontade e perguntamos sobre bebida, álcool, sexualidade e, por fim, idealizações suicidas. Esse momento também foi extremamente delicado, pois não sabíamos muito bem como abordar o tema... por isso, fomos perguntando se ela era feliz, como se sentia, por que queria um encaminhamento ao psicólogo, e se ela já tinha pensado em fazer mal à alguém ou a ela mesma. A resposta da paciente me chocou, pois ela confessou que havia tentado suicídio dezoito vezes, com medicamentos, muita das vezes planejado, outras apenas no calor do momento. Tivemos que conduzir a história desse suicídio com cautela, buscar causas e históricos familiares, através dos quais descobrimos que sua mãe era depressiva e tentou suicídio na sua frente e na do pai.
Em suma, ao final da consulta, a conduta realizada foi de mudança de hábitos alimentares, suplementação vitamínica, prescrição de antiparasitário (suspeita de Giárdia devido à dispepsia e à diarreia prolongada). Além disso, quando a professora/médica chegou na consulta, tivemos mais uma dificuldade, que foi a de explicar e contar o caso de suicídio sem mostrar ao pai essa parte, pois ele não tinha conhecimento das tentativas, apenas a mãe, amigos e o coordenador do colégio de Priscila, para que a professora pudesse ficar ciente e saber como conduzir o caso. A conduta para essa queixa foi encaminhamento para o psicólogo e uma conversa com Priscila, na qual pudemos ver a mudança do seu semblante... foi reforçado que sua vida valia a pena, e que não caberia a ela tirá-la, pois ela tem propósitos e desejos de vida a cumprir; abordamos isso atrelado ao fato dela ter comentado que não concluiu as tentativas devido à forte presença da igreja na sua vida. Ao final da consulta, pedimos que retornasse com 1 semana para, além de avaliar o tratamento para a giárdia, mantermos ela por perto para cuidar da sua saúde mental. Priscila retornou com 7 dias e foi atendida novamente por mim e pela minha dupla; conversamos sobre as queixas, com resolutividade na dispepsia e na diarreia, porém ainda com persistência de suas idealizações e de pensamentos suicidas. Então, a encaminhamos para um projeto da faculdade com o intuito de melhorar a sua saúde mental. Ao fim dessa segunda consulta, ela entregou chocolate para nós como forma de gratidão, me fazendo encher os olhos e perceber que todas as dificuldades e esforços foram recompensados, não pelo chocolate, mas pela gratidão e acolhimento dessa paciente, que além de ser muito nova para tudo que passou, ainda me relembrou de pessoas próximas a mim que talvez não tenham tido esse acolhimento no posto de saúde.
Com essa paciente, pude me apaixonar pela Atenção Primária e ver o quanto podemos fazer apenas com uma mesa, uma cadeira e uma conversa sincera e acolhedora.
Isso certamente mudou minha visão de Atenção Primária e me fez querer conhecê-la mais e mais, além de querer muito mais experiências como essa.
Os meus aprendizados nessa história foram tantos que não caberiam em palavras, mas principalmente os desfechos e dificuldades na cultura me fizeram crescer na medicina, e aprender na prática o ditado de “quem vê cara não vê coração”, pois a paciente não tinha fisionomia nem queixas sobre suicídio, mas conseguimos extrair dela na primeira consulta, o que foi ainda mais gratificante. Pude perceber que alguns pacientes deixam marcas e ensinamentos que vão além dos livros, e que toda a experiência é necessária.
Júlia Leite Garcia
Um relato emocionante e que nos ensina muito!