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Quando acolher é o melhor cuidado

  • integralizablog
  • 14 de mai. de 2021
  • 4 min de leitura

Último ano de medicina, estava frequentando o ambulatório de Saúde Mental. Pela primeira vez tive a oportunidade de vivenciar um atendimento psiquiátrico infantil. Meu paciente tinha TDAH e a sua mãe apresentava-se bastante exausta devido a sua rotina de cuidado, ao ponto que desqualificava o seu filho inúmeras vezes.

Uma violência psicológica, ela usava frases do tipo: “se eu pudesse dar ele eu dava, mas ninguém quer, ele é meu filho e eu que tenho que cuidar mesmo...”, “quando a gente engravida quer ter um filho normal e não uma criança assim...”, “como vai ser o futuro dele, ele não consegue fazer nada, ele não se esforça pra nada...”. Vi em minha frente um menino de 13 anos que ouvia sua mãe e aos poucos baixava sua cabeça cada vez mais, ao ponto de não aguentar e se debruçar completamente sobre a minha mesa, de cabeça baixa.

Eu estava ficando com raiva daquela mãe e por um impulso perguntei: A senhora sabe que eles está te ouvindo né? Que ele é um menino de 13 anos que compreende as coisas e que não tem nenhum nível de retardo mental? Ela calou, ele ergueu a cabeça, e em um segundo tive um insight: essa mãe também está sofrendo! Percebi que a consulta deveria se direcionar muito mais a mãe do que a própria criança e mudei o foco.

O desconhecimento do TDAH fazia com que ela flutuasse em sua percepção. Hora culpabilizava a criança por suas atitudes, sua “indisciplina”, hora tratava ele como alguém incapaz. A consulta girou em conscientizar essa mãe da condição clínica de seu filho, desmistificando a origem dos comportamentos apresentados, desconstruindo a ideia de que ele era incapaz e fazendo com que ela refletisse sobre as qualidades do paciente.

Conversamos também sobre a sobrecarga de tarefas que ela acumulava como mãe, esposa, responsável pelo cuidado da casa e de todos de sua família e a necessidade do auto cuidado, da valorização de suas necessidades pessoais e profissionais renunciadas há muitos anos atrás. Esse atendimento foi desafiador e muito gratificante. Ao fim da consulta dona Clara estava reconhecendo as qualidades de seu filho e relembrando momentos que se orgulhava dele. Uma mãe que chegou aborrecida e ressentida estava mais calma.

Perguntei como ela se sentia, ela me disse que estava muito mais tranquila, com o coração mais leve. A discussão com a preceptora foi muito interessante, sugeri que as próximas consultas fossem realizadas em dois momentos, um primeiro momento com

a genitora e um segundo momento com o paciente, na tentativa de acolher essa mãe e reafirmar as importância de ser mais positiva nas suas intervenções a cada consulta, e também de auxiliar o paciente a se estabelecer melhor em seu núcleo familiar e social.


Autora: Pseudônimo "Linda Flor"


Comentário do blog:

O relato nos traz de forma clara a necessidade de vermos além das aparências. Uma mãe vista inicialmente como alguém que desqualifica e agride verbalmente seu filho pode ser na verdade alguém que está gritando por socorro. Quantos de nós paramos para pensar nisso na hora de um atendimento? Felizmente, a autora do relato teve sensibilidade suficiente para parar e perceber que a pessoa que mais necessitava de atendimento naquele momento era a mãe e não o paciente. E que bom que isso aconteceu. Porque o paciente não vai se tornar saudável se viver em um meio adoecido, tendo relações humanas adoecidas.

Esse relato nos mostra a necessidade de cuidar de quem cuida. De ouvir quem cuida. E nós, médicos, precisamos desenvolver essa habilidade, parando para ouvir não só o paciente, mas também quem o acompanha. Para isso precisamos mudar a nossa perspectiva, ver além do que está sendo mostrado. Uma mãe em sofrimento, que era traduzido pela agressividade contra o filho. E um filho que baixava a cabeça para as agressões da mãe. Mãe e filho necessitando de ajuda.

Outro ponto que podemos perceber durante a leitura do relato é a percepção da autora quanto ao sentimento de raiva na situação presenciada durante a consulta. Sabemos que o encontro clínico é um momento em que o profissional da saúde e o paciente ligam-se e interagem também por meio das emoções. No relato podemos perceber essa troca de sentimentos com a cuidadora do paciente e desmistificando a visão que a medicina é decisões clínicas objetivas e livres de comprometimento emocional. Levamos como lição aprender a entender nossos sentimentos deflagrados e utiliza-los para ajudar e compreender o outro indivíduo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • DALLABONA, Márcia Ivete; SILVA, Milena Meryda. Cuidar de si e do Outro: Desafios da enfermagem. Artigo Científico apresentado na Pós-Graduação em Saúde Mental e Atenção Psicossocial do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí – UNIDAVI.

  • CASTELHANO, Laura Marques; WAHBA, Liliana Liviano. As emoções do médico e as implicações para a prática clínica. Psicol. USP, São Paulo, v. 31, e180030, 2020.


Você já presenciou ou vivenciou alguma situação parecida? O relato acima te despertou algum sentimento que você gostaria de dividir conosco?


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1 Comment


maria.suelyilva.melo
May 22, 2021

Como disse a autora quem é o paciente afinal nessa narrativa? Merece a reflexão , pois o olhar precisa ir além do "paciente" , quando há uma disfunção familiar por qualquer questão, a abordagem precisa ser para todos os membros do núcleo familiar, e expandindo para a comunidade e assim vai.

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