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Quando os outros dizem "não", mas seu coração diz "sim"

  • integralizablog
  • 23 de abr. de 2021
  • 7 min de leitura

Atualizado: 17 de dez. de 2021

Eu era interna, o rodízio dessa vez seria na U.T.I. de um hospital público no Piauí.

Primeiro momento, Mara.

Assim que cheguei, fiquei responsável por uma paciente chamada Mara. A Mara tinha 15 anos, estava internada já há alguns meses na U.T.I. por causa de um AVC sem etiologia definida. Já tinha feito vários exames cardíacos, cerebrais e continuava em coma, intubada, sem melhora do quadro, emagrecida e com uma escara enorme no quadril.

Segundo momento, Jorge.

Poucos dias depois da minha chegada no rodízio da U.T.I. deu entrada um paciente jovem, cerca de 20 anos, vítima de acidente automobilístico, com TCE grave, o Jorge.

Todos os dias o preceptor responsável do setor e do meu grupo fazia a “corrida de leito” e quando chegava no leito da Mara e do Jorge ele sempre balançava a cabeça negativamente e dizia que eram casos graves, que não tinham mais jeito e que estavam só esperando “chegar a hora”.

Eu não gostava de ver e ouvir aquilo. Incomodava eu ter que desistir dos meus pacientes.

Então, por não concordar, todos os dias eu ia examiná-los e, apesar de estarem em coma, de não terem nenhuma resposta, eu sempre avisava que eu era a doutora, falava meu nome, que ia examiná-los, que era “tal” hora, dia “tal” e que a família ainda iria visitar. Todos os dias.

Um dia cheguei no leito da Mara e o acesso venoso central estava desconectado, sangrando muito, chamei a enfermeira chefe para me ajudar e ela parou na frente da Mara e disse: “tadinha, não vai sair dessa não...” E eu briguei, como que fala isso na frente da paciente? Não tinha certeza se ela escutaria, mas se escutasse, o que o efeito dessa frase teria pra ela, intubada, incapaz? Se nem a medicina sabia a causa ou a cura?

A Mãe do Jorge sempre conversava comigo nas horas da visita. Eu falava do quadro grave e ela sempre dizia que tinha fé em Deus que ele iria melhorar. Já eu respondia: “tenha fé mesmo, porque Deus é maior que qualquer medicina.”

E eu pude comprovar com a Mara e o Jorge que Deus é sim maior.

A Mara e o Jorge tiveram alta da U.T.I. Eu pude visitar os dois na enfermaria. A Mara estava se recuperando do déficit neurológico e da escara e a mãe do Jorge me apresentou, como a doutora que cuidou dele.

Costumo dizer que a Mara e o Jorge são meus milagres na medicina. Gosto de contar sobre eles porque acredito que não devemos desistir dos pacientes que nos são confiados. Mesmo que no nosso íntimo tenhamos o aprendizado técnico-científico dizendo que acabou, devemos dar o nosso melhor, porque acredito que essa retribuição do cuidado, conforta o paciente, familiares e a nós mesmo.



Autoria: Gabrielle Rolim

Médica radiologista e professora de medicina.



Comentário do blog:


A medicina é uma profissão que exige extremo estudo na vida toda do profissional, principalmente porque ele lida com algo que é essencial ao viver: a Vida.

Na sua formação o acadêmico é bombardeado de conhecimentos técnicos diversos, mas o essencial mais de 80 por cento das faculdades não se preocupam, com a formação não só tecnicista mas humanística, habilidade comportamental, psicoespiritual dos alunos.

O primeiro levantamento para avaliar o panorama da formação médica em saúde e espiritualidade, por exemplo, realizado no Brasil em 2012, demonstrou que 40% dos cursos de graduação em medicina do Brasil apresentam a espiritualidade em suas propostas curriculares, muitos de forma pontual. (Lucchetti G et al, 2013). Já nos os Estados Unidos e a Inglaterra, esta temáticas eram abordadas no curriculum em até três quartos das escolas médicas” (Puchalski, 2006 apud Almeida, B.R, 2019).

Filosofia, humanismo, espiritualidade , artes, são temáticas que são julgadas desnecessárias e por isso mesmo excluídas na formação do futuro profissional, que antes de tudo precisa compreender que ele é um ser humano assim como seus pacientes, e sua natureza interna precisa ser também trabalhada durante o curso, para que esse egresso ao começar a sua carreira esteja preparado técnico e humanisticamente para lidar com a dor, a morte e o morrer, e tantas outras adversidades que exige um preparo emocional-espiritual, não é surpresa que encabecem a lista de menor expectativa de vida , maior incidência de dependência química , infarto agudo do miocárdio, neoplasias, suicídios, Síndrome de Burnout e outras patologias entre os profissionais ditos liberais da área da saúde.(Barbosa, 2007)

Na Declaração de Veneza, documento tirado em 1986, quando reuniram-se dezenove ilustres representantes das áreas das ciências (incluindo dois Prêmios Nobel), artes, filosofia e das Tradições espirituais mais respeitáveis, todos representado dezesseis nações, reconhecendo a urgência de uma procura verdadeiramente transdisciplinar, de uma troca dinâmica entre as ciências "exatas, as ciências "humanas", a arte e a tradição, a espiritualidade, para manter a sobrevivência do ser humano sobre o planeta, e influenciar a formação de todos os profissionais, principalmente na área da saúde.

Ai perguntamos: estão os estudantes preparados durante o curso para saber lidar com a “alma humana” ou seja o nome que se dê aquela energia incorpórea que anima a matéria? Numa visão cartesiana e positivista, claro que a discussão desviará para que isso não é ciência. Ai perguntamos o que é ciência afinal? O biólogo Rupert Sheldrake denuncia os dogmas da ciência dita oficial e escreve o livro “Ciência sem dogmas” aponta caminhos científicos revolucionários, unindo ciência, filosofia e espiritualidade, sempre usando o método científico, e reavaliando as interpretações convencionais das evidências e pesquisas. Como negar que a medicina vive a crise paradigmática entre o cartesianismo e o paradigma integralista, sistêmico?

Diante do movimento que surgiu na década de 90 do século XX onde pesquisadores trazem uma nova concepção de espiritualidade e mostrando o quanto trabalhar a dimensão espiritual do paciente traz bons resultados animadores de superação de doenças graves como as neoplasias, na dependência química, na aceitação de situações irreversíveis, mas que mantem a qualidade de vida daquele paciente até o desenlace final. (KOENIG, 2001)

Como negar os estudos sobre a interação mente-cérebro e a interferência no corpo físico, como negar que a fé tem mobilizado energias curativas (vix medicatrix naturae) em pacientes que são capazes de se auto curar quando a medicina muitas vezes chega no seu limite de atuação e os renega a qualquer outo tratamento, como se apenas a matéria requer cuidados. Como negar todo o investimento de médicos como Elisabeth Kübler Ross que defende em toda sua produção literária que perseverança e uma busca interna e intensa, objetiva o aprender o sentido da vida e da morte, seu e de seus pacientes (1998).

Esta linda e comovente história é o exemplo, diante de muitas, que o profissional médico não deve ser cuidador apenas de corpos, mas também de alma, e desistir de um paciente, ainda que veja distante uma recuperação do seu problema corporal, não esquecer que ali tem uma mente, uma alma, uma consciência, seja o nome que se queira dar ao que há além da matéria condensada, que exige cuidados tanto quanto o corpo físico. E a determinação da estudante diante do seu próprio desenvolvimento espiritual que já possuía, supera no tratamento a postura do seu professor e demonstra que quando não desistimos presenciamos os chamados de “milagres”, contudo a ciência metafísica, os estudos de campos energéticos do ser humano, a ciência espiritual tem suas explicações para esses fatos porém rejeitadas. São muitas as pesquisas que existem, e são excluídas da academia que luta para manter o dogma que o médico tem que ter formação tecnicista baseada nas evidências positivistas.

Ninguém discute os avanços da ciência oficial, mas quando a medicina com todo seu conhecimento e tecnologia não consegue evitar a vidas ceifadas, como está acontecendo na pandemia, lembremos que casos de recuperação nos surpreende, e estes não foi a medicina material, claro deu grande suporte, mas o conhecimento espiritual inato e a conduta integralista que traz o viver de pacientes outrora considerados desenganados.

O estudo e aprofundamento da espiritualidade pode já estar desenvolvida em algumas pessoas, contudo ela pode ser despertada, sensibilizada nas pessoas, este é o motivo que precisa ser inserida nos currículos de todos os cursos de saúde, pois a postura da aluna foi envolvendo toda equipe, ela mostrou que estava pronta para ser médica só faltava um maior conhecimento técnico, uma vez que ainda era acadêmica, e ao contrário o professor precisava retornar a estudos que pudessem contribuir para melhor conduzir os pacientes e ensinar a seus alunos com lidar com os processos psico-espirituais dos pacientes, e respeitar o ser que adoece ou é vítima de fatalidades, não um corpo material apenas. O ensinamento de cuidado apresentado pela aluna, e espírito de equipe e humildade e coletividade por entender que no tratamento todos tem sua parcela de contribuição, é uma verdadeira aula de humanismo, e espiritualidade aplicada no cuidado ao paciente.

Referências


RAMACHANDRAN, Vilayanur S. O que o cérebro tem para contar: Desvendando os mistérios da natureza humana. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

ALMEIDA, B.R.de; MELO, M.S.S.; BARRETO, F.R., Saúde e Espiritualidade: Concepções de Graduandos do Curso de Medicina de Uma Universidade Pública Federal - Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Medicina do Campus Prof. Antônio Garcia Filho da Universidade Federal de Sergipe, 2019.

BOFF, L. Espiritualidade um caminho de transformação. 3. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2001.

KOENIG H.G., M CULLOUGH M.E, LARSON DB. Handbook of Religion and Health – New York. Oxford University Press.2001.

KOENIG, HG. Medicina, Religião e Saúde. Editora LPM, 2012. 1a. Edição, 248p. ISBN13: 9788525427199.

KOENIG H.G. & COHEN. The Link between Religion and Health. New York: Oxford University Press 2002.

Koenig HG, McCullough M, Larson DB. Handbook of religion and health: a century of research reviewed. New York: Oxford University Press; 2001.

Puchalski, CM. The hole of spirituality in health care. BUMC Proceedings, Waco.2001; v. 14, n. 4, p. 352-357

Kubler-Ross, E. RODA DA VIDA, A - MEMORIA DO VIVER E DO MORRER, Editora Sextante (GMT), 1998.

BARBOSA, G. A. et al. A SAÚDE DOS MÉDICOS DO BRASIL. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2007. 220 p.


 
 
 

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4件のコメント


Aike Teixeira
Aike Teixeira
2月22日

Como eu me vi em você, Gabrielle. Meu Deus! Parabeeeeéns!

編集済み
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amanda_unb
2021年4月27日

Perfeito esse post! Quantas e quantas vezes fiz a mesma coisa, repreender os próprios funcionários que tanto desacreditavam dos pacientes. E eu sempre acreditei. Muitos se foram, mas uma grande parte se recuperou para contar a história! Muito aprendizado em ser humano e se colocar no lugar do outro!

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gabriellear2
2021年4月28日
返信先

Que legal Amanda! Obrigada por compartilhar também! Acho que é importante mostrar os relatos das experiências médicas ou enquanto estudantes ainda, como faz o blog, para mostrar que é possível ser humano ao atender outro ser humano. Tanto nós médicos quanto os pacientes tem sentimentos, amor, família, sonhos, trabalhos. Que a faculdade e o trabalho do dia a dia, não nos façam afastar de nós mesmos nem dos nossos pacientes. Grande abraço! Obrigada Blog Integraliza e parabéns pela iniciativa tão valiosa!

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