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Sou docinho, Doutora...

  • integralizablog
  • 26 de fev. de 2024
  • 4 min de leitura

Mais um dia de atendimentos na unidade básica de saúde! Sempre nos deparamos com atendimentos de pacientes com diabetes, e naquele dia não seria diferente, porém algo convocou minha atenção. Antes de chamá-lo, dei uma lida rápida no prontuário para entender um pouquinho de sua história, que por enquanto era apenas sua história clínica...Enfatizo clínica porque até o final daquele atendimento, a clínica era mera ponta de um “iceberg” de toda sua história de vida! E para os que viveram a época do “Castelo-Rá-Tim-Bum”: - Senta que lá vem a história...


Começando pela ponta do “iceberg, mais conhecido como prontuário, percebi que se tratava de um paciente muito jovem, apenas 29 anos que já estava em acompanhamento para o tratamento do diabetes e que já estava em uso de insulina. Como uma ávida aluna típica do terceiro ano, sem nem olhar para a cara de quem eu atenderia já pensei: - Só pode ser portador de diabetes tipo 01... isso está na cara!!! Já tinha cravado meu diagnóstico e fui chamá-lo na recepção. Neste momento, o primeiro impacto foi um paciente emagrecido, pois lá no prontuário de um atendimento há 04 meses, seu peso estava mais de 92 kg. A imagem que havia desenhado na minha cabeça a lá “O fantástico mundo de Bobby” (quem teve infância na década de 1990 já entendeu do que eu estou falando) foi desaparecendo e assim adentramos o consultório para o início do atendimento.


Apresentei-me ao paciente que estava acompanhada de sua companheira a qual estavam juntos há 06 anos e perguntei: Como posso te ajudar hoje? E ele me respondeu: “Doutora vim aqui hoje porque sou docinho!”. A minha primeira reação foi de não entender e perguntei de novo... Quem respondeu foi sua companheira que disse que ele tinha diabetes, mas não gostava nem de falar o nome... Aí minha “ficha caiu”, pois estava diante de um paciente que negava sua própria condição de saúde.


Lembram da minha certeza de diagnóstico, quase a própria personificação do CID 10 em pessoa?... Foi por terra! Ele tinha diabetes tipo 02 totalmente descompensada e estava numa síndrome consumptiva, totalmente refratário ao tratamento que não aderia corretamente, que se diga de passagem, não eram por falta de informações que foram prestadas pela equipe de saúde da unidade com a educação em saúde necessária para que ele obtivesse sua qualidade de vida.


Todas as informações que perguntava a ele eram negadas veementemente pela sua companheira que em várias situações parecia mais fazer a “maternagem” dele do que a companheira de vida... Na anamnese, dentre todos os questionamentos e respostas de inadequações alimentares que se eu relatar aqui vai virar um pergaminho, foi de que ele tomava dois litros de Coca-Cola por dia! Sim queridos leitores, foi isso mesmo que vocês entenderam! Por isso nem vou me delongar aqui dizendo que não come verduras e legumes nas porções recomendadas pela Organização Mundial de Saúde! Tirem suas próprias conclusões.


Neste momento, enquanto anotava as informações recebidas, minha cabeça fervilhava de como poderia ajudar meu paciente em sua fragilidade... Era uma pessoa que preferia fingir não ter a doença em estado de negação plena... Uma pessoa que viu parentes mutilados pela doença e até óbito, mas preferia “varrer a sujeira para debaixo do tapete” ao invés de enfrentá-la. Foi aí que comecei a falar que tinha também doença crônica, que tinha herdado a hipertensão dos meus pais. Sei que o foco ali era o paciente, mas meu intuito era mostrar ser possível ser jovem (jovem, mas não tão jovem assim, pois este ano inaugurei a minha quarta década de vida).


A partir disso ele começou a se abrir e falar como se sentia frente a doença. “- Há doutora, com essa doença não posso comer nada, não tenho vida”. Tentei fazer mais uma vez uma educação em saúde, no primeiro momento a saúde orgânica de substituições saudáveis e a tentativa de outras diminuições que quase denotou a “Política de redução de danos” em que ele continuaria a ter os seus prazeres alimentícios de forma mais saudável. Esse primeiro momento foi a parte mais fácil do “P” do SOAP dele, já o segundo momento...


Esta consulta que como disse, o mais fácil seria o visível, o mensurável no aparelho de glicemia. Mas, o aprendizado dele não terminou aqui, nem o meu enquanto aluna... Pelo contrário, apenas iniciamos o “check mate” que a professora daria a essa partida! Pelo menos naquele dia... Uma frase que tenho certeza, marcou não só ao paciente, mas a minha formação acadêmica: “O que você quer de nós?” O que tínhamos para te oferecer já foi feito... Agora basta você querer! Isso foi dito depois de várias pontuações não mensuráveis que culminaram em um atendimento biopsicossocial. Entender aquela pessoa que estava diante de mim, despida de julgamentos e em todas as suas dimensões de fragilidade me remeteu ao psicoterapeuta Carl Jung “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana.”


Ana Carla Ferreira Silva dos Santos

 
 
 

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