A oportunidade que tive com aquela batida na porta...
- integralizablog
- 23 de out. de 2023
- 4 min de leitura
Em uma típica manhã de sexta-feira, iniciei o atendimento com mais duas colegas. No entanto, a professora bateu na porta da sala de consulta e pediu que um entre nós três fosse atender junto a uma outra colega de turma, uma determinada paciente. A pessoa que se disponibilizou a ir atender foi eu. Antes de chamar a paciente Maria (nome fictício), 23 anos, a professora e a gerente da unidade falou um pouco sobre a história dela, a qual tinha depressão, ideação suicida, era de difícil contato e relutante a consultas médicas, inclusive era raro ela ir.
Confesso que inicialmente fiquei bastante apreensivo com as informações, cheguei a acreditar que Maria fosse nos abandonar durante o atendimento. Ao entrar na sala, ela entrou bastante cabisbaixa, apática, com os pés descalços, com mal autocuidado aparente, acompanhada de sua prima. Para mim, aquela situação era bastante atípica, visto que até o momento não tinha atendido um paciente com problemas psicológicos. Assim, eu e minha colega começamos a atender Maria, que não nos respondia bem, geralmente era sua prima que nos respondia. Foi a partir da visualização do problema de Maria e de sua situação naquele momento, que percebi que deveria deixar de usar aquele modelo biomédico padronizado, o qual foca apenas no processo saúde/doença, e “tirar aquela capa branca” com o objetivo de me aproximar dela.
Como resultado, buscamos formar um vínculo com Maria, a conversa começou a ser mais fluida, regida por termos mais simples, do dia a dia e com descontração, outro fato que nos ajudou nisso foi a proximidade de idade entre nós. Ao questionar o que tinha te levado a consulta, Maria respondeu que queria colocar o dispositivo intrauterino (DIU), tal fato nos chamou atenção, haja vista que todo o seu problema psicológico não tinha sido comentado. Logo, começamos a fazer mais perguntas, foi aí que sua prima resolveu contar toda a história. “Maria era casada, tinha uma filha e morava em um determinado povoado da cidade. Há 3 anos, nesse local, estava ocorrendo uma festa entre a vizinhança, foi aí que ocorreu uma discussão entre seu ex-marido e um vizinho, o que resultou em um assassinato. O seu marido tinha atirado contra o vizinho. Como resultado, os familiares do acometido começaram a ameaçar tirar a vida dela, da sua filha e do filho que estava em sua barriga, sim, Maria estava grávida quando tudo aconteceu. Desesperada, ela fugiu para casa do seu pai, a qual ficava localizada em uma outra cidade, e o seu ex-companheiro foi preso. Diante disso, o marido entrou na lista para receber auxílio penitenciário, foi aí que a família dele resolveu buscar a guarda das crianças com o objetivo de cuidar deles e ficar com o dinheiro. A partir disso, o seu mundo desabou, Maria não sentia mais vontade de viver, pois seus filhos estavam longe.” Na tentativa de atenuar tal situação, ela começou a beber, fumar e não cuidar de si, ela só queria os seus filhos de volta.
Foi um momento muito forte, a paciente começou a chorar na sala ouvindo a sua própria história, e isso nos deixou bastante angustiados. Foi possível entender que a preocupação dos avós paternos dos seus filhos não era com a qualidade de vida dos netos, mas sim com o dinheiro, eles apenas queriam justificar judicialmente a necessidade de ficar com a pensão. Infelizmente a ganância tira a parte humana/ empática dos indivíduos.
Logo em seguida, fizemos exame físico e chamamos a professora para passar o caso e concluir o atendimento, foi nesse momento que aprendi bastante. A professora com sua experiência e empatia, deu várias lições, as quais até serviram para mim. Uma que me chamou mais atenção foi a que a professora perguntou a Maria: “como você consegue comprar o cigarro e a bebida, visto que não tem nenhuma fonte de renda?”. Maria, com autoridade, disse que “conseguir coisas que não prestam é fácil”. Assim, a professora interviu e disse: “por que você insiste em deixar feliz essas pessoas que te oferecem “coisas que não prestam”, já que utiliza o que elas te oferecem, e não deixar feliz aquelas que querem o seu bem, como a sua prima que está aqui e seus filhos?” Foi aí que Maria não soube responder e ficou bastante reflexiva. Logo, fiz um autoquestionamento, por que às vezes também “alimento” aquilo que não é bom para mim, por que insisto em permanecer dessa forma?
Dando continuidade ao atendimento, foi esclarecido a Maria que o principal motivo daquela consulta não era apenas a implementação do DIU, mas sim a sua saúde mental, que contribui nos diversos aspectos da vida. Com problemas psicológicos, Maria não poderia ir ver seus filhos, haja vista que a aparência dela iria causar espanto a eles. Logo, discutimos uma série de situações que permitissem ela sair daquele estado e ter uma perspectiva de vida melhor, inclusive, a de conquistar a guarda dos seus filhos.
Em síntese, aquela mulher cabisbaixa e apática saiu da sala com um sorriso no rosto, foi aí que percebi que precisamos deixar de lado, em algumas situações, aquele modelo de aprendizado padrão, é preciso ver o paciente de modo integral, abrangendo o estado biopsicossocial, é fundamental olhar ele além da doença. Foi um dia único, me senti realizado ao poder ajudar uma pessoa ficar mais feliz. Espero que ela fique bem, consiga a guarda dos seus filhos e que eu tenha a oportunidade de atender outras Marias.
Fabrício Passos Santana
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