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Aprendendo a ouvir o paciente

  • integralizablog
  • 7 de mai. de 2021
  • 5 min de leitura

Atualizado: 15 de jun. de 2023

Começar o internato em meio a pandemia foi um desafio. Iniciamos em outubro, quando a primeira onda tinha dado uma “trégua” e os hospitais de campanha tinham fechado. Passei por clínica medica ambulatorial e embora tivesse todas as mudanças no atendimento com as medidas de proteção, não foi muito diferente do que eu já havia experenciado em práticas médicas durante a graduação. O segundo rodízio foi pediatria, a maternidade estava fechada para as práticas em neonatologia e no pronto socorro, não havia casos: “as crianças não estão mais na escola para pegar viroses” dizia uma das pediatras que acompanhei.

O rodízio seguinte foi em Urgências e Emergências. Foi onde tudo foi algo novo para mim. Desde as admissões no PS e as evoluções na ala azul, até os plantões no eixo crítico e na Unidade de Doenças Respiratórias (UTI Covid, praticamente). Muitas práticas, muitos procedimentos, muitos aprendizados. Coloquei a mão na massa como dizem. Tive a oportunidade de colher gasometrias, fazer acessos venosos centrais, intubar pacientes, ajudar na evolução e conduta dos casos, participei de inúmeras RCPs... Nervosa e muitas vezes insegura, mas fui evoluindo com coragem e vontade de aprender.

Um dia, ao iniciar nosso serviço com as coletas de gasometria de rotina, conheci o Sr Carlos. Idoso com todas as DCNT prevalentes além de um câncer na região cervical e orofaríngea. Emagrecido, desidratado, consumido pela doença e agora com diagnóstico de COVID. Os plantonistas diziam que o caso dele era complicado, que devíamos entrar com cuidados paliativos. A família não aceitou.

Mesmo intubado e com medicações para sedoanalgesia, Sr Carlos apertava minha mão com força cada vez que eu iria examiná-lo. As técnicas de enfermagem que também o assistiam diziam que era uma prática comum dele. Apesar da correria que é a rotina na UTI COVID eu permiti que se expressasse. Esse era o gesto máximo de expressão que aquele ser poderia ter, sua forma de demonstrar qualquer sentimento. Não era permitido visitas familiares ou qualquer outro contato. Apertar a mão de quem o cuidava era a única maneira que eu tinha de ouví-lo. Eu o acolhi.

Conversei, coloquei uma música enquanto o examinava e realizava os procedimentos de rotina mesmo sem saber se poderia me ouvir ou sentir. E a cada vez que minhas mãos esbarravam em seu braço para algum procedimento, ele se mexia, procurava e agarrava minha mão com força.

O que nós da área de saúde fazemos nesse momento de mortes em massa é muito pouco no âmbito de qualidade de vida nos momentos finais. Não há médicos o suficiente. Não há ventiladores o suficiente. Não há medicamento que cure.

É assustador quando a gente tem que conversar com um paciente e ele pergunta se vai morrer e a gente não pode dizer que não porque ele já tem 90% do pulmão comprometido. É assustador reanimar uma pessoa que de manhã estava bem e no final do dia parou. Fico sem palavras quando alguém percebe que vai ser intubado porque já não consegue mais respirar sozinho e pergunta quando vai ver sua família de novo.

Nesses momentos somos todos aprendizes. Nesse momento o que mais quero é acolher, “ouvir” suas aflições através de um aperto de mão e garantir o máximo de humanidade, mesmo no momento de morte.



Autoria: Lilian de Melo Lucena

Universidade Federal de Sergipe



Comentário do blog:


O toque nunca fez tanta falta nas relações humanas. No último ano nos desacostumamos com o abraço de saudação e o aperto de mãos, aprendemos a nos comunicar cobertos por máscaras de proteção e mantendo um distanciamento seguro de 1,5m e em um ambiente hospitalar tentamos redobrar esses cuidados. O relato acima mostrou que o toque de mãos foi a melhor forma de manter a humanidade na relação médico-paciente e que despertou na autora um sentimento de acolhimento, provavelmente recíproco, com o Sr. Carlos.

Em tempos de doença, aqueles que cuidam também precisam ser curados, pois nenhuma alma, por mais preparo técnico que tenha, está habituado a conviver com uma média de mortes nunca visto antes em nenhum centro de saúde. A estudante em questão apresentava ainda mais essa necessidade, pois partilhou seus últimos semestres de graduação, que deveriam ser de intensos aprendizados e conquistas, com a dor de ver ambulatórios vazios e hospitais superlotados. Precisou abdicar de seus desejos individuais para dedicar seus dias e seu trabalho em salvar aqueles que mais estavam precisando nesse momento.

Quando aprofundamos mais nessa problemática podemos ver estudos que creem em uma mudança permanente nos rumos da educação médica pós-covid, em que estudantes aprendem cercados de inseguranças adicionais em relação à contaminação intra-hospitalar e ao medo de “levar a doença para casa”. É importante que internos e residentes sejam acolhidos, pois o sacrifício de dedicar-se inteiramente ao estudo de uma doença, por mais importante e urgente que seja, poderá trazer consequências à formação como humano que cuida.

Além disso, outra temática muito importante foi retratada no texto: a paliação em ambiente intra-hospitalar. Dificilmente uma família que entende os cuidados paliativos a recusaria. Porém, em um ambiente instável como uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) com diversos paciente graves por Covid e a expectativa de decisões rápidas, comunicações assertivas e preparo da família para o impacto do prognóstico. Dessa forma, por mais que o hospital talvez seja o local de maior contato do paciente grave com o serviço de saúde e represente uma excelente janela de oportunidade para afilar os laços e melhorar a comunicação paciente/família/profissionais, existem inúmeras dificuldades práticas que inviabilizam essa comunicação.

Tanto no papel de profissional da saúde, quanto de paciente e familiar, é difícil aceitar que, naquele ambiente cheio de recursos tecnológicos e pessoas preparadas para salvar vidas, a única conduta possível é acolher a morte. No relato, a morte mostra três faces: a da família que evita aceitar que morrer seja o desfecho, a do Sr. Carlos que procura acolhimento diante da incerteza que o momento lhe traz e a da narradora que se sensibiliza com a situação do Sr. Carlos. Assim, conseguimos perceber a necessidade dos cuidados paliativos não só para o paciente, mas também para as pessoas ao seu redor, trazendo a morte não como tabu e maldição, mas uma etapa que também precisa ser vivida.

É necessário que todos os profissionais de saúde tenham a sensibilidade de sempre procurar possíveis prognósticos e indicar os cuidados paliativos. Por isso é extremamente importante que o médico em formação participe dessas decisões e procure entender como é feita a comunicação com a família.


REFERÊNCIAS

Veja também:

  • https://website.abem-educmed.org.br/educacao-medica-em-tempos-de-pandemia/

  • https://www.instagram.com/alunoscontraocorona/



Você já presenciou ou vivenciou alguma situação parecida? O relato acima te despertou algum sentimento que você gostaria de dividir conosco?

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1 Comment


Dra. Ana Raquel Santiago de Lima
Dra. Ana Raquel Santiago de Lima
May 08, 2021

Forte relato. muitas vezes faltam palavras e somente resta sentir. Os sentimentos no entanto também pode bater muito forte em nós e dialogar com nossas vivências internas e subjetivas. Que bom que o paciente pôde contar com a presença atenta e empática neste momento dramático de sua vida. parabéns.

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