Autocuidado
- integralizablog
- 20 de nov. de 2023
- 3 min de leitura
Durante a graduação em Medicina, vivemos sempre lotados de conteúdos, aprendemos as mais diversas doenças, a examinar, diagnosticar e tratar. Aprendemos ainda a como abordar o paciente durante a consulta, porém, na maioria das vezes, aprendemos isso tudo tendo como base um mundo ideal, o que na prática não é assim, e normalmente nada ocorre como planejado.
No dia 18 de novembro de 2022, estava na UBS em Clínica Médica para realizar mais um atendimento como todas as demais sextas-feiras. Como natural, havia dois pacientes novos que nunca tinham vindo à UBS, e a professora, brincando, pediu para eu escolher um deles na sorte. Nisso, acabei ficando com Luna (nome fictício), uma jovem de 17 anos. Assim que peguei seu prontuário, a professora já me orientou que necessitaria um maior cuidado com ela, pois existia a possibilidade de ela estar com HIV positivo.
Logo de cara já fiquei um pouco preocupada. Se realmente ela tiver HIV, como vou lidar com essa informação? Ou mais, como vou transmitir ela para Luna? Como abordar essas questões com uma jovem? Será que conseguirei passar confiança o suficiente para que ela se sinta à vontade para falar comigo sobre isso?
Porém, como falei anteriormente, nada ocorre como imaginado. Luna realmente era um caso diferente de todos com que já tinha me deparado em minha vida acadêmica.
Não, ela não estava com HIV (Então tudo bem, certo?). Infelizmente, não.
Para começar, Luna é uma jovem de 17 anos, estudante, mora com sua mãe, seu pai, uma irmã unilateral materna e um sobrinho de 2 anos; namora a 2 anos com um jovem de 18 anos, a quem vamos chamar aqui de Paulo.
Ela chega ao consultório acompanhada por sua mãe, trazendo exames que tinham sido feitos como rotina. À primeira vista, ela queria apenas mostrar tais exames, não apresentando nenhum sintoma.
Tentei puxar mais assuntos, explorar melhor cada aspecto, e nisso ela me relatou uma perda de peso de 6kg em 2 meses, e foi a partir desse dado que toda história surgiu. Luna apresenta um quadro de ansiedade extrema, relatando até falta de ar durante as crises. Ela não se alimenta nada bem: relata não jantar, come apenas biscoitos e pão pela manhã, macarrão e arroz no almoço, comendo muito pouco em todas as refeições e bebendo pouquíssima água. Além disso, vive de maneira isolada e não tem boa relação com ninguém de seu convívio.
E isso tudo surgiu de quê? Luna possui uma péssima relação familiar: seus familiares brigam tanto a ponto de a polícia ser chamada. Ademais, seu sobrinho foi diagnosticado com um tumor cerebral, do qual encontra-se em processo de recuperação. Além disso, a piora do seu quadro de ansiedade esteve associada ao término de seu relacionamento com Paulo em setembro, momento em que iniciou sua perda de peso e que não houve melhora mesmo com a reconciliação do casal.
A mãe ainda relata que Luna passa a maior parte do tempo deitada no quarto e não possui contato com ninguém. Ela não possui amigos e não tem nenhuma relação de confiança com Paulo ou qualquer outra pessoa. Foi nesse momento que tentei explorar mais seus sentimentos e percebi ela tensa, suas mãos tremiam e seus olhos encheram de lágrimas. Com isso, não sabia mais o que perguntar e resolvi dar um tempo a ela para se acalmar. Voltamos à consulta. Diante de todo esse quadro de má alimentação, Luna passou a dormir muito devido à falta de energia, interferindo diretamente em seus estudos. Além disso, ela apresentou um quadro de baixo peso, anemia e sífilis. Ela relatou ter realizado relações sexuais sem preservativos com Paulo. Apresenta ainda cristais na urina devido à baixa ingestão de água e fezes ressecadas.
Ao passar o caso para a professora, relatei toda situação e, a partir disso, orientamos sobre a importância do autocuidado. Luna tem o desejo de realizar faculdade de enfermagem e, por isso, informamos que, antes dela aprender a cuidar do próximo, é essencial que ela cuide de si. Falamos sobre como ela deve se priorizar em primeiro lugar sempre, cuidar do seu físico, mental e social, afinal isso é saúde. Não adianta nós, profissionais de saúde, usarmos todos os conhecimentos disponíveis na literatura se não conseguimos cuidar de nós mesmos. Somos os principais responsáveis por nosso processo de saúde. Mais uma vez Luna chora na consulta e mais uma vez fico sem reação.
Para minha vida, o que aprendi com a história de Luna foi a importância do autocuidado, o qual quero cada vez mais impor em minha vida, e o que mais desejo é que ela consiga fazer o mesmo, para que possa desenvolver uma vida mais leve e saudável.
Aline de Jesus Lima
Oi, Aline! Autocuidado por aqui (na minha vida) é um tema complexo... tão difícil superar habitos não saudáveis! Espero um dia melhorar isso...
Que essa sensibilidade nunca se afaste de você. Parabéns pelo texto, Aline! Parabéns, equipe Integraliza. Lindo texto!
Li a experiência da estudante de medicina, atendendo a jovem paciente, 17 anos
E gostaria de compartilhar algumas observações -
- um caso clínico de alta complexidade
- além do tema principal - autocuidado
- entendi tb estar envolvido o tema: comunicação de más notícias
- bem como orientar sobre a qualidade, (re)construção das relações pessoais familiares e sociais da jovem paciente
- a HPP da jovem pacte - transtorno da ansiedade + VDRL positivo
- outras ISTs (?)
- outros transtornos da saúde mental associados (?)
-risco de gestação não planejada (?)
- necessidade de suporte e seguimento por equipe multidisciplinar (?)
infectologia
psiquiatria
psicologia
serviço social
outro, conforme registrado na história clínica e exame físico da jovem…