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Choque

  • integralizablog
  • 21 de nov. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 27 de nov. de 2024

Em uma das nossas quintas feiras na Unidade Básica de Saúde Josefa Romão, minhas colegas finalizavam um atendimento relativamente estressante enquanto eu anotava as informações, porque não era meu turno no nosso rodízio interno entre anamneses e exames físicos. Como não era minha rodada, eu saio para chamar a professora para avaliar o paciente quando uma senhora me aborda, o que é comum nos postos de saúde, considerando que os pacientes tendem a confiar mais naqueles vestindo um jaleco. A informei que não trabalhava na Unidade e não poderia ajudá-la, apesar de eu não entender o que ela desejava por estar visivelmente agitada. A mesma senhora já havia me abordado outras 2 vezes naquela manhã, e eu não conseguia identificar qual era sua situação.

Ao retornar à sala com a professora para finalizar o atendimento das minhas colegas, somos interrompidos pela gestão da Unidade, com um paciente de urgência. A professora então informa que não podemos atender mais um paciente pelo tempo que levamos nas consultas, mas a gerente pediu gentilmente que déssemos um jeito porque era realmente importante. Por bem, como já tínhamos finalizado o atendimento do dia, aceitamos atender a urgência. Dessa vez, fico responsável pela anamnese, e imagine a minha surpresa ao descobrir que a paciente era, coincidentemente, a senhora que insistentemente me abordava nos corredores da Unidade, a quem chamaremos de Teresa.

Dona Teresa, 50 anos, casada, com 6 filhos e com laqueadura tubária há 26 anos, chega ao consultório com queixa de infecção urinária. Seu discurso era espontâneo, prolixo e o pensamento era totalmente desorganizado. Sua agitação era visível, e por vezes se fazia de difícil compreensão, dada a quantidade de queixas que foram despejadas sobre mim em uma questão de poucos minutos. Acredito que essa tenha sido uma das consultas mais difíceis de toda a reposição, pois era muito difícil tentar organizar as informações ao mesmo tempo que ela divagava entre suas múltiplas queixas. Dona Teresa relatou ter diabetes descompensada, apesar de fazer uso da medicação, e que sua glicemia na semana anterior havia ultrapassado os 300mg/dl. Relatou também o início dos sintomas de infecção urinária haviam 3 dias, com disúria, polaciúria e oligúria, bem como dor difusa em região dorsal e hipocôndrios. Desejava apenas uma medicação para tratar a infecção, já que o farmacêutico havia negado e dito que ela precisava buscar um médico pelo risco de complicações em pacientes diabéticos.

Em meio às minhas tentativas de organizar a anamnese por um raciocínio lógico dos fatos, dona Teresa relatou sentir dores no corpo crônicas, generalizadas e incapacitantes, medo de tomar a vacina contra COVID-19, contou sobre seu marido cardiopata e sobre o fato de ambos estarem desempregados e recebendo auxílio financeiro dos filhos. Confesso que, até este momento, eu duvidava um pouco da veracidade das informações que dona Teresa fornecia. A agitação era tamanha, que em alguns momentos ela parava de se dirigir a mim, e tratava com as minhas colegas, claramente irritada por eu interrompê-la tentando compreender seu quadro e organizar as informações. Minhas dúvidas aumentaram quando passei para o Interrogatório Sintomatológico, após uma longa e confusa história da doença atual. Dona Teresa apresentava queixas em todos os sistemas que eu interrogava, maioria dos sintomas associava ao fato de ter contraído COVID no ano anterior. Acabei pulando algumas etapas do interrogatório sintomatológico por conta do tempo da consulta e por perceber que se tratava de um transtorno de somatização, compatível com o quadro de dores crônicas fibromialgia-like.

Não pude deixar de me compadecer com a situação de dona Teresa, pois me identifiquei com a sua somatização e com suas dores. Ela acabou me marcando por ter sido a primeira vez que me vi em um paciente, mesmo que em apenas um aspecto do todo. Dona Teresa chorava relatando como as dores impactavam sua funcionalidade, suas atividades de vida diária e a faziam sentir inútil. Ela aparentava ter vários sinais de transtorno depressivo maior. Foi doloroso ver outra pessoa se sentindo da mesma forma que eu, por tantas vezes, já havia me sentido, na posição de paciente, ao me deparar com as dores crônicas sem perspectiva de cura. Ao mesmo tempo, é essa experiência que me motiva a seguir com a minha profissão e ajudar outrem a não passar pelo que passei, nas mãos de médicos que não compreendiam 1/3 do meu quadro.

Voltando a dona Teresa e seu quadro de infecção urinária, minhas colegas prosseguiram com o exame físico enquanto eu tentava organizar o prontuário, com muito esforço. Pedi que elas tivessem bastante atenção ao realizar a manobra de Giordano, já que a paciente relatava dor difusa em região dorsal. Para meu espanto, não só o abdome de dona Teresa era doloroso à palpação superficial de maneira generalizada, como também a dor à manobra de Giordano fora tão intensa que a fez urrar e chorar. Neste ponto, era impossível examinar qualquer outra coisa, uma vez que ela não conseguia nem falar de tanta dor. Chamamos então a professora para finalizar o atendimento, mas ela estava em outra consulta e tivemos que aguardar por um tempo. Enquanto aguardávamos e dona Teresa se acalmava, aproveitei para examinar os tender points da fibromialgia, para os quais ela teve positivos 17 dos 18 preconizados pelos critérios da ACR de 1990. Verifiquei no prontuário que o seu médico assistente já havia solicitado exames complementares que descartassem outras causas para a dor. Seguimos conversando e tentando distraí-la enquanto a professora finalizava a outra consulta. Orientamos que a vacina contra COVID-19 era segura, não iria interferir na sua diabetes e que era essencial diante da gravidade da doença. Ela relatou mais algumas de suas frustrações e demonstrou influência extensa do seu estado emocional na sua saúde.

Após algum tempo, a professora Suely retorna ao nosso consultório, e assim que repassamos o caso, ela pede que busquemos o glicosímetro. Uma de minhas colegas retorna informando que o glicosímetro da UBS não tinha fitas para o teste. A professora imediatamente explica que suspeita de um quadro agudo de pielonefrite, complicação frequente de infecção urinária em pacientes diabéticos, e que, se não tratada, pode evoluir para sepse rapidamente. Fiquei assustada pois não havia me atentado para essa possibilidade. Fizemos encaminhamento de urgência para o Hospital Universitário de Lagarto, e ligamos para um dos nossos professores, infectologista, que sabíamos que estava de plantão naquele dia. A professora informou que não poderíamos medicar a paciente antes de ser avaliada no hospital e de medir sua glicemia. Sabíamos também que, se a medicássemos, ela poderia não buscar o serviço de urgência do hospital e, dada a gravidade da hipótese diagnóstica, era um risco que não poderíamos correr.

Orientamos dona Teresa a buscar o Hospital imediatamente ao sair da Unidade Básica. Não a vi depois dessa consulta, porém ela nunca saiu de meus pensamentos. A angústia de encaminhar um paciente possivelmente grave, sem saber se ela havia seguido nossas orientações, se havia sido atendida no hospital, se havia sido tratada, internada ou se havia sofrido uma sepse, se havia se curado ou evoluído para choque, ainda me acompanha. Se pudesse, tentaria acessar com um dos médicos da Unidade o seu prontuário eletrônico, mas infelizmente só lembro seu primeiro nome.

O período de reposições de práticas em 2021 foi meu primeiro contato com pacientes de fato. Somos ensinados a estabelecer um vínculo, tratar bem, ter empatia; porém não nos ensinam a lidar com a frustração de não poder acompanhar o paciente até o fim, ou de saber que há um limite de quanto podemos ajudar aquela pessoa. Para mim, a maior frustração é saber que não havia nada ao meu alcance naquele momento, a não ser ouvi-la. Apesar disso, tento me convencer de que, só o fato de ter passado mais de 1h ouvindo dona Teresa relatar todas as suas queixas, posso ter ajudado mais que profissionais que nunca a deixariam falar.


Beatriz Luduvice Soares

 
 
 

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