Desfecho final
- integralizablog
- 30 de abr. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 15 de jun. de 2023
Quero falar sobre dois pacientes que tive ao mesmo tempo no meu primeiro emprego. Recém-formada, com a vontade de mudar o mundo e a força de um furacão, achava que estava preparada para lidar com o processo de morrer, mas essa história provará o contrário.
Na primeira semana, uma paciente jovem, de 50 e poucos anos, casada, com filhos adultos, que vivia em uma casa de 3 cômodos e padecia com um câncer de pulmão metastatizado em cérebro e ossos. O segundo paciente era um homem em torno de 80 anos, morava com o filho de 60, ambos solteiros e, principalmente, solitários. Ambos tinham sido funcionários públicos e viviam com uma boa renda de aposentadoria em uma casa que destoava do padrão da cidade. Ele sofria com um ferimento aberto em boca/palato/cavidade nasal que deteriorava a face e função. Esses são os personagens da história: uma médica com pouquíssima experiência e dois pacientes padecendo em suas casas.
As aulas de orientação familiar estavam na minha memória: convoquei famílias, NASF, assistência social e os equipamentos que consegui mobilizar. Nas primeiras reuniões na casa dela, vejo um esposo que chorava e velava antecipadamente a amada que gemia na cama, um filho que fingia se importar mas que saía nos primeiros minutos para “resolver problemas pessoais” (eu ainda tentando entender qual problema pessoal seria maior que sua mãe morrendo), uma filha que acabava de chegar de outro estado, grávida de um homem que os pais não aceitaram o namoro, e uma vizinha, a sensata, que estava sempre querendo me chamar em particular para revelar detalhes. Estava montada a prescrição: corticoide todos os dias, tramal de horário, hidratação, alimentação, conforto. Restava convencer a família. Ligo para o hospital de referência, não tenho nenhum retorno! Vou à secretaria de saúde, exijo um pedido de contrarreferência. NADA! Consigo convencer um filho a ir lá com uma carta de referência minha, tenho retorno que tanto queria: “paciente fora da possibilidade terapêutica, feito alta orientada para melhor conforto”. Expliquei, mostrei imagens dos exames para a família, mostrei-me disponível. Assim foram várias das reuniões que sempre acabavam com o esposo chorando, a filha distante, o filho já tinha ido embora e a vizinha preocupada.
Meu outro paciente e seu filho eram mais difíceis, a situação era delicada. A porta estava sempre trancada, janelas fechadas, mofo e casa abafada! Entrávamos mas não éramos convidados a sentar perto da rede que sustentava o corpo frágil do nosso personagem. A fono já havia avaliado: comer pela boca não era mais uma possibilidade mas era o que o filho sabia e podia fazer, era o que se tinha. Estudei sobre indicação de sonda em paciente domiciliado, reuni fono e nutri, montamos um plano, mas esquecemos do principal: de envolver o filho e cuidador. Batíamos na porta 3 vezes na semana, quando éramos convidados a entrar, nenhuma de nossas ideias eram aceitas! Tentei argumentar, recomendei uma avaliação com especialista, consegui uma ambulância para levá-lo, nada! Nada que falássemos era suficiente e a relação estava ficando pior. Fomos acusadas pelo filho de tentar matar o pai ao sugerirmos abrir as janelas, fomos expulsas de sua casa sob ameaças quando identificamos uma infecção na ferida e recomendei antibioticoterapia. Não fomos recebidas nas tentativas posteriores. Chamei CREAS (aleguei abandono), pedi reunião na secretaria de saúde, lá estava novamente convocando todos os equipamentos para ajudar em uma batalha perdida: a de convencer um filho que via o pai morrer em suas mãos de que ele não sabia o que era melhor para o pai.
Iludida e encantada por tantos conceitos, critérios e prognósticos, não entendia ali o que falhava nas duas abordagens: empatia de verdade!
A minha paciente morreu dois dias depois da minha última visita, a qual preparei a família, assim achava que tinha feito, para um processo ativo de morte. Sentimos quando entramos no ambiente que a morte se aproximou, a família também, a paciente sente, mas, às vezes, é difícil acreditar nos sentidos e verbalizar! Conversamos mais uma vez sobre seu desejo de morrer em casa, combinamos de não levá-la para o hospital; a agente comunitária de saúde me ligaria se acontecesse. Mas a família a levou, ela morreu logo que entrou na enfermaria do hospital da cidade, intubada, inconsciente, rodeada de uma equipe que não a conhecia, o esposo em casa chorando, a vizinha resolvendo a burocracia, a filha percebendo o quadro ali no momento da morte e o filho chorando na cama da mãe. Eu fiquei triste, raivosa e me sentindo impotente! Depois lidei com cada um e suas particularidades, fiz o pré-natal do primeiro neto da minha paciente e acompanhei o luto de seu esposo. O filho nunca mais o vi, com a vizinha firmei um vínculo que só foi quebrado quando saí dessa cidade.
Meu outro paciente piorava, a julgar pelo cheiro que emanava da porta fechada e da perceptível irritação na voz de seu filho que gritava ofensas contra a “doutora que nem tinha cara de doutora”. Cogitei chamar até polícia, pedia a Deus que nada acontecesse com ele, que algum milagre acontecesse. No dia que cumpri minhas últimas horas na cidade e me preparava para pegar o voo que me levaria a outra moradia, soube da notícia e nós nos despedimos juntos da cidade. Eu para uma outra realidade, ele para um outro plano.
Não foi fácil aceitar que não fiz o possível em ambos os casos, mesmo os conhecendo já sabendo que estavam se preparando para a partida nas próximas semanas, foi difícil demais aceitar que isso aconteceu sob os meus cuidados. Hoje, anos depois, com um pouco mais de experiência e muitas horas de terapia é menos doloroso lembrar de todos eles e de como os deixei.
Autoria: Sanni Parente
Comentário do Blog:
“Curar quando possível, aliviar quando necessário, consolar sempre”. Essa famosa citação é atribuída a Hipócrates, o Pai da Medicina, e até hoje é uma das que mais representa a essência da profissão. Porém, uma coisa que alguns de nós temos muita dificuldade em entender é que o bem nem sempre é sinônimo de cura, e esta nem sempre está disponível.
Acontece a finitude e a morte, parece algo antinatural para a maioria dos seres humanos. Temos uma dificuldade de aceita-la, seja como familiares e até mesmo como médicos. É nesse momento em que se torna necessário falar de cuidados paliativos que se refere a uma filosofia de cuidado e área de atuação que norteiam o conjunto de ações empregadas com a finalidade de oferecer melhora na qualidade de vida de pacientes terminais (desde o momento do diagnóstico). Ações essas que são realizadas por uma equipe multidisciplinar.
Ainda é comum, na visão dos leigos, que a paliação seria sinônimo de eutanásia – quando há esforços em antecipar a morte -, o que obviamente não é verdade. Na verdade, a paliação se trata de esforços para evitar a distanásia – que diz respeito aos esforços em prolongar a vida de um paciente incurável e já no processo de finitude.
O princípio XXII do Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina dispõe: “nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.” Lembrando que ainda em 2006, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução CFM nº1.805/2006, que no seu artigo 1 diz: “é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou do seu representante legal”.
O médico é dotado de conhecimento e obrigação legal de reconhecer os pacientes aptos a paliação e indicar tais medidas aos pacientes. No entanto, como podemos ver no relato acima, não basta apenas identificar e indicar. A família do paciente faz parte ativamente desse processo. Sem a participação da mesma podemos enfrentar a situação em que o profissional não consegue nem mostrar os porquês de sua decisão, ou acontecer de nos momentos finais a família não respeitar a indicação e acabar submetendo o paciente a procedimentos invasivos desnecessários. Ambas as situações representadas no relato. Com isso é preciso entender que a comunicação é um fator essencial nesse contexto. A relação médico-paciente-familiar acaba se tornar um pilar de confiança para que o melhor seja feito pelo paciente enquanto a vida segue seu curso natural.
Recomendações:
Palestra: "A morte é um dia que vale a pena viver" - Ana Cláudia Quintana Arantes
Entrevista: "A única certeza" - Jout Jout entrevista Ana Cláudia Quintana Arantes
Referências Bibliográficas:
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA: RESOLUÇÃO CFM no 1805/06 Bioética, 2005;
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM – Brasil). Código de ética médica. Resolução nº 2217/2019. Brasília: Tablóide, 2019.
Essa narrativa, também impactante de uma experiências de um profissional da saúde, da categoria médica nos remete a reflexões da construção do pensamento coletivo das posturas que são exigidas, de que sempre tem que se conseguir atender a tudo que o paciente precisa. Como disse Hipócrates: “Curar quando possível, aliviar quando necessário, consolar sempre”, contudo trago outras duas reflexões a dos mitos dos deuses gregos da medicina, o de Kyron que por ter sido ferido e sofrer continuamente entendia ainda mais a dor do próximo, e de Asclépio , discípulo de Kyron, que apesar desse ensinamento, mas com a inteligência superior ao seu mestre, queria curar sempre, e superar a morte. Nunca um profissional conseguirá fazer tudo que imagina, des…