Escutando com humanidade
- integralizablog
- 28 de fev.
- 3 min de leitura
A diferença que se pode fazer na vida de alguém através de um gesto tão simples como o de prestar atenção aos detalhes é incrível. Eu sou uma estudante do terceiro ano do curso de medicina, e vou dividir com você, caro leitor, uma das lições mais especiais que tive nos últimos tempos.
Foi a algumas semanas atrás, um colega de sala e eu atendemos uma paciente, que na realidade nem foi na unidade básica de saúde naquele dia para se consultar, ela estava lá para acompanhar uma pessoa, porém o meu colega acabou ouvindo ela se queixar de uma dor, então a convidou para o consultório em que estávamos para que pudéssemos a examinar.
A paciente, que a partir de agora chamarei de Rosana (nome fictício), de 37 anos, divorciada, mãe de quatro filhos e única responsável pelo sustento de sua família, apresentava uma dor, de intensidade muito alta, no flanco direito que irradiava para o dorso (dor na parte inferior direita da barriga que ia “andando” para as costas). Já tinha quase 24h desde o surgimento da dor e esta era acompanhada por êmese (a paciente referiu sete episódios), e de característica intermitente com evolução e involução gradual. A paciente nos contou ainda que possuía gastrite, e que já havia tido sífilis (que contraiu do ex marido enquanto eram casados após ele a trair), mas que já havia feito o tratamento adequado. Nos contou ainda que faz exercício físico de forma regular, se hidrata bem, e quando nos relatou as refeições, explicou que não costuma comer muito pela manhã, que almoça uma quantidade normal de alimentos, e que raramente costuma jantar, pois não sente fome a noite.
Com os achados durante o exame físico e tudo que ouvimos dela, meu colega e eu chegamos a conclusão que provavelmente seria uma cólica nefrética ou, talvez, um caso de apendicite, então, fomos em busca da professora. E, aqui, neste ponto do meu texto talvez você tenha concluindo que o título dele faz referência ao fato do meu colega ter ouvido a queixa daquela pessoa e ter levado-a ao atendimento, porém ainda não é isto. Apesar de achar a atitude dele excelente e super adequada à situação, o título desse texto é baseado em uma observação que meu colega e eu sequer pensamos durante aquele atendimento.
Bom, como eu comentei anteriormente ao chegar no possível diagnóstico, fomos atrás da professora (a médica responsável), quando ela chegou relatamos todas as informações obtidas durante a consulta, e uma das primeiras perguntas que ela fez para a paciente foi sobre ela não jantar: “Por acaso, você deixa de jantar para dar o alimento aos seus meninos?”. Sim, caro leitor, essa frase foi a escuta humana à qual me referi. Meu colega e eu, talvez pela apreensão de tentar descobrir o que a paciente tinha já que ela relatava sentir muita dor no momento da consulta ou talvez pela nossa falta de experiência já que ainda estamos começando com os atendimentos, não conseguimos enxergar, naquele momento, além daquela enfermidade, e perceber que talvez estivéssemos diante de uma família com insegurança alimentar.
A paciente acabou explicando que era por falta de apetite ao fim do dia mesmo, pois tornou-se um hábito na vida dela não comer à noite. Mas eu refleti muito sobre isso, sobre essa situação e como teria feito a diferença para uma família com insegurança alimentar que alguém percebesse, escutasse aquelas informações de forma mais humana e conseguisse identificar aquela situação para ajudá-los. Refleti muito sobre a integralidade do atendimento médico, e de como nós estudantes subestimamos as dificuldades em pôr ela em prática.
Parece fácil, parece óbvio, parece algo que não passaria despercebido, mas a verdade é que temos que nos manter atentos para que a integralidade no atendimento ocorra de maneira adequada e eficaz, para que a integralidade não seja esquecida, para que a doença jamais seja maior que o paciente, para que nunca, em hipótese alguma, nos transformemos em médicos que ao invés de ouvir, enxergar e tratar pacientes, ouvem apenas sintomas, enxergam apenas doenças e tratam apenas exames. Obrigada por ler até aqui! Espero que, assim como eu, você tire uma lição para a vida com este caso.
Autora: Hellen Neo
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