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Há remédio para tudo?

  • integralizablog
  • 12 de fev. de 2021
  • 5 min de leitura

Atualizado: 15 de jun. de 2023

Em um momento de descontração, uma professora falou para a turma que a cada ano que se passava, ela separava pelo menos um caso de algum atendimento que a marcou. Décadas de Medicina em exercício e ela continuava com esse hábito. Particularmente, achei uma atitude muito bonita: se esforçar para identificar um paciente que seja inesquecível ano após ano. Então, decidi fazer a mesma coisa. E é graças a isso que escrevo hoje sobre o primeiro paciente-inesquecível que encontrei, quando ainda estava no 3º ano do curso. Convido-os a conhecer um pouco da história de quem eu chamarei de Sr. Resiliente.

O Sr. Resiliente já era um conhecido da minha professora. Eu, estava na segunda semana de aulas práticas naquela Unidade Básica de Saúde e não o conhecia ainda. Minha professora que me trouxe a ficha com o nome dele e me fez um pedido: “Olha, eu conheço esse paciente. Ele vem em tratamento de um câncer de pele. Vinha apresentando uma excelente recuperação. Estava tão feliz por ele. Mas hoje, quando o encontrei lá na recepção, achei que ele estava tão abatido. Emagrecido. Durante a consulta procure qualquer sinal de que o câncer possa ter voltado!”

O Sr. Resiliente era simpatia pura. Mais de 50 anos, lavrador, chefe de família. Sua voz era contida, cansada; não exatamente baixa, não exatamente envergonhada, de fato, contida e cansada. Na face, encontrava-se a cicatriz deixada pela enxertia de pele após a cirurgia excisional do tumor. Na mesma face via-se um sorriso simpático de uma pessoa muito colaborativa.

O motivo da consulta era trazer uns exames laboratoriais de rotina solicitados na última consulta e aproveitar a ocasião para pedir um relatório médico para levar ao INSS. Ao longo da conversa, conheci um paciente muito compromissado com seu tratamento, cumprindo todas as recomendações que lhe foi dada. Tomo conhecimento que ele não pode mais trabalhar, devido ao ofício de lavrador e extensão da lesão com uma enxertia recente não seria possível retornar ao campo. Tomo nota da sua perda de peso: 4kg desde a última consulta, que havia sido dois meses atrás. Teve febre nesse período? Não. Dor de cabeça? Também não. Tosse? Também não. Alguma alteração no seu hábito intestinal? Também não tive... e assim, todos os sinais e sintomas clínicos que poderiam evidenciar alguma doença orgânica ativa eram negativos.

Então qual a causa dessa perda de peso? E a fraqueza que ele tinha referido? E anemia apontada no hemograma? Acredito que vamos precisar de mais exames para descartar um novo tumor – pensava, eu naquele momento. Até que enfim, fiz a habitual pergunta: “E como anda sua alimentação? Tem tido apetite?”

A resposta me dilacerou!

Tenho apetite sim... Pausa. Mas vou ser sincero. O ritmo da conversa desacelerou. Como eu te falei, não tenho como ir pro campo trabalhar. E eu gosto bastante de trabalhar. Não sou preguiçoso. Mas não dá pra ficar tomando sol assim né? Eu me cuido, uso protetor, uso chapéu, mas não dá né... Só que as coisas têm ficado difíceis. O chefe da família sem trabalhar, as coisas apertam. E pra piorar, o INSS cortou o meu benefício. Tem 7 meses que eu não recebo um centavo. Eu fui atrás dos meus direitos. Cortaram por engano. Fui atrás de advogado. Mas ainda não fui chamado pra perícia. O advogado me falou que vão marcar pra esse mês estou aguardando. Mas sem trabalhar, fica tudo difícil. Não tenho me alimentado direito. Estou dependendo das doações de amigos, dos vizinhos de roça, tem gente que me ajuda. Mas nem sempre dá pra tudo, né? Esses dias mesmo não deu. Mas ainda bem que segundo o advogado, esse mês tudo se revolve... 7 meses assim, não é fácil não.

Enquanto escrevo me surpreendo que mesmo após três anos, eu ainda lembro das palavras que ele usou ao me contar sua situação. Lembro de como fiquei abalado. De como questionei o nosso sistema. Interromper um Auxílio Doença por engano não é apenas um erro de perícia, ou um erro de sistema... é uma falha grave com o outro ser humano. Uma falha capaz de adoecer, de emagrecer, de trazer fraqueza, de abater o espírito por obrigar ele a depender da boa vontade de terceiros. E é pior lembrar que não há alguém que possamos culpar. É uma falha nossa como sociedade, como sistema. No fim eu estava em frente ao paciente não com uma doença orgânica, mas com uma doença social.

A minha professora chegou. Lembro de juntos fornecemos orientações, elaborarmos um relatório médico extremamente caprichado, com todas as informações clínicas possíveis. Porém, são vagas minhas memórias sobre as demais condutas... Inesquecível, entretanto, é a lembrança da sensação de impotência que me restou após me despedir dele. O remédio para a fome, é a alimentação. Mas não há um remédio para a pobreza, muito menos, para as injustiças.

Alejandro Wolfferson dos Santos


Comentário do blog:

Olhar a pessoa à sua frente em busca de um diagnóstico como câncer é uma tarefa difícil e realizada cotidianamente por profissionais de saúde, tão comum que nos adaptamos a protocolos montados com conceitos de epidemiologia clínica para guiar nosso olhar para possíveis focos primários ou metastáticos. Aprendemos como conduzir uma investigação de perda de peso não intencional, quais exames complementares solicitar e, até mesmo, protocolos de comunicação de más notícias ao paciente que recebe o diagnóstico. Mas é raro ver um profissional que se mantém neutro e com seu pensamento científico inabalável após se deparar com o diagnóstico de fome.

A cruel realidade de 10 milhões de brasileiros que vivem com a insegurança alimentar (dados de janeiro de 2020) no país que alimenta 1 bilhão de pessoas no mundo nos choca pela negação do direito básico à alimentação garantido a todos os cidadãos do País através da Constituição de 88.

O médico precisa ouvir essa e tantas outras histórias de vida com o olhar científico de quem pode ajudar e, mais do que isso, com o olhar humano de quem pode sentir a dor junto ao paciente, se indignar tanto como se fosse um dos seus e se colocar como agente de transformação nessa vida.

No relato emocionante publicado acima podemos ver uma interface da ligação entre a medicina como ciência da saúde e as ciências sociais, comprovando que o elo entre essas é estreito. O profissional de forma objetiva pode ajudar não somente pelo fornecimento do laudo para conseguir a perícia médica no INSS, mas como fonte de informações sobre benefícios sociais aos quais o paciente tem direito, equipamentos (CRAS, CREAS, Defensoria Pública, sindicato dos trabalhadores rurais e outros) ao qual o paciente pode construir o caminho para garantir o que lhe é direito e, se em uma realidade que permite, vinculação desse paciente à rede de apoio construída na comunidade e que as equipes de saúde atuantes no território podem ter conhecimento.

Vivemos um momento de muita dificuldade àqueles que necessitam de apoio de instituições para garantir a proteção à dignidade humana, nesse texto tendo especial ênfase à saúde e seguridade social, agravados nos últimos meses pela pandemia do novo coronavírus, em que trouxe inúmeras dificuldades a pessoas que não possuíam renda fixa, vínculos empregatícios seguros e condições de trabalho adequadas a manter suas atividades durante as medidas de distanciamento social. A interface entre saúde, condições de vida/moradia/emprego, seguridade social e cidadania nunca foi tão urgente e presente desde a criação do SUS.

Para que essa abordagem fosse concluída com esperança de melhora da qualidade de vida desse senhor outras ferramentas precisaram ser utilizadas, como a longitudinalidade (pois se a professora não o conhecesse tão bem possivelmente a consulta se delimitaria a mostrar exames e fornecer orientações), empatia do estudante que acolheu a história de vida e suas dificuldades mesmo não sendo uma queixa clínica e ambiente propício para o diálogo e confiança mútua.


Compartilhe conosco nos comentários a sua opinião sobre o texto!


Referências:


Sugestão de Leitura:


  1. Geografia da Fome, Josué de Castro.

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2 Comments


assislucena.df
Feb 12, 2021

Excelente iniciativa da medica/professora em selecionar fatos/casos de pacientes que marcaram sua carreira pois iniciativas como estas irão aprimorar os próprios conhecimentos como principalmente dos futuros médicos. Que esse exemplo seja seguido por outros médicos é outros profissionais de carreiras diversas como da educação e segurança pública.

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Maria Suely Silva Melo
Maria Suely Silva Melo
Mar 09, 2021
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Sr Assis, agradecemos muito seu comentário , aguardando que outros sigam seu exemplo, numa interação alunos/profissionais /comunidade para fortalecer essa proposta.

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