O revés do viver
- integralizablog
- 27 de jan. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 17 de dez. de 2021
Eu sempre pensei que meu primeiro paciente fosse aquele que eu não fosse esquecer, mas eu estava errada, até porque nem faz tanto tempo assim do meu primeiro paciente e eu já esqueci, mas aquele dia foi diferente.
Como faço usualmente, estava em mais um dia acompanhando o professor infectologista no hospital da minha cidade e, pela primeira vez, havia esquecido meu estetoscópio. Por esse motivo, ele me deu um caso em que, teoricamente, eu não precisaria auscultar, uma celulite em membro inferior, igual às milhões de outras que já tinha visto.
Por ter esquecido o estetoscópio, queria me empenhar para fazer a melhor anamnese da minha vida, colher a história de forma completa, não deixar passar nada. E nem podia deixar, pois no final das contas, as informações vieram até mim, como se eu precisasse ouvir tudo aquilo e sair da minha bolha.
O paciente era uma criança de 8 anos, quase da mesma idade do meu sobrinho. Seu nome não é relevante aqui, mas vamos chamá-lo de Anjo. Ele estava acompanhado de uma mulher, que pensei ser sua mãe, mas não, era sua tia Regina, com quem ele morava há alguns anos.
Até esse dia, pensava que minha única função era coletar histórias e exames físicos, mas nesse dia não, nesse dia, tudo foi diferente. Não foi uma simples coleta, foi um soco bem no meu estômago quando eu menos e de onde menos eu esperava.
Comecei as perguntas padrão sobre sinais flogísticos e outras queixas que poderiam estar relacionadas à celulite. Conversa vai, conversa vem, descubro que ele mora com a tia com mais outras 3 crianças e nenhuma era filha dessa tia, achei muito estranho, mas até aí tudo normal, vai que a mãe faleceu né?! Mal sabia eu que alguns minutos depois iria desejar que tivesse sido só isso.
Foi na hora do exame físico que meu corpo foi tomado por um vazio e uma tristeza sem tamanho, algo que eu nunca senti antes na minha vida, foi como se meu mundo tivesse desabado apenas alguns segundos depois de ter ficado perfeito.
Observei uma cicatriz no abdômen e região genital de cerca de 8 cm. De início pensei: não é possível uma hérnia desse tamanho, mas mal tive tempo de estipular outra teoria, porque quase de automático, perguntei a tia: “o que foi isso?”. Lembro-me bem da minha cara ao perguntar, mas não tenho noção nenhuma de como fiquei por fora depois que fui respondida.
A resposta foi simples, curta, objetiva, mas pairou no ar como se eu não tivesse assimilando os fatos: “minha mãe me bateu”, disse Anjo, com uma fácies neutra, que não demonstrava tensão, nem tristeza, apenas um fato, como qualquer outro. Fiquei pensando: que mãe é essa que bate assim no filho, mas a história não estava suficientemente ruim, não, não. Iria piorar.
A surra resultou em uma esplenectomia de emergência, retirada de parte do intestino, 18 dias em coma e mais de 1 mês internado, entre a vida e a morte. Como se isso não fosse suficiente, vieram mais informações: Anjo era estuprado pelo padrasto e tudo isso aos 3 anos de idade. TRÊS ANOS DE IDADE.
Aquilo ficou na minha cabeça e antes que eu pudesse compreender o aquilo significava para uma criança de 3 anos, senti todo meu corpo rígido e as lágrimas querendo sair, mas eu não podia, eu estava diante de uma pessoa tão pura, que me ensinou tanto, que estava dentre outras coisas, feliz e eu? Só não era digna de chorar na sua frente, de demonstrar fraqueza para a pessoa mais forte que eu havia conhecido até então. Continuei, segui firme.
Perguntei como Regina sustentava as 4 crianças e ela disse que ganhava cerca de 300 reais por mês descascando mandioca. Que vida tão diferente da minha, quanto sofrimento, parece até uma estória com trajetória tão ruim, que merecia ser apenas uma invenção.
Perguntei como ela conseguiu atendimento, já que eles eram de outra cidade, foi quando Regina me contou que colocou Anjo nas costas e correu alguns quilômetros até chegar no postinho da cidade deles.
Para mim, já tinha dado, já havia atingido meu limite há muito tempo, mas agora eu precisava sair para não demonstrar minhas fraquezas. Mal consegui fechar a porta da sala que eles estavam, me desfiz em lágrimas e não tive vergonha de quem pudesse me olhar daquele jeito, só chorei, como choro todos os dias que me lembro desse caso. Fui acolhida pelo meu professor e me senti feliz por estar bem acompanhada. Fui para casa. Não comi, não dormi, nem sequer consegui pensar em outra coisa. Tirei meu irmão do trabalho, fomos em uma loja, precisava comprar algo para ele e principalmente, dizer que ele não está só e que espero que ele seja muito feliz. Comprei uns carrinhos que sabia que ele gostava e uns materiais de escola. Dei tudo a ele e senti que um pedaço de mim também ficou com Anjo e um pedaço dele ficou comigo.
Autoria: Nathália Santos Cunha
UFS- Lagarto
Comentário do blog:
Abordar a violência contra criança é e sempre será um grande desafio para o profissional médico por se tratar de um tema que envolve questões não somente técnicas, mas morais, emocionais e de justiça, o que nos exige equilíbrio. Equilíbrio para nos manter firmes ao lado de nosso paciente sem nos distanciarmos dos sentimentos que nos tornam essencialmente humanos. A narrativa nos remete a sensibilidade humana adquirida no encontro com o outro, a aproximação usando a técnica anamnésica, não impediu um coração sensível de sentir mais que empatia pelo paciente, a compaixão. Elementos muito importantes para o exercício da medicina sob a óptica humanizada e não tecnicista.
Quando se trata de violência a criança, a indignação mobiliza emoções profundas. Apesar de todo avanço adquirido com o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), regulamentado pela lei 8.069/1990, que completou 30 anos de existência em 2020, percebemos que temos muito ainda a evoluir enquanto raça humana. A postura com sofrimento do médico/estudante de medicina diante de tais situações pode ser até recriminada por alguns, mas o que o médico precisa é ter autocontrole e não insensibilidade diante do sofrimento dos seus pacientes. Alguns acreditam que para ser médico a pessoa precisa ser insensível, ou que os médicos se tornam insensíveis com o tempo pois se acostumam com a presença do sofrimento alheio, há quem diga que é uma forma de proteção, e outros, como nós, acreditamos que estar sensível as dores dos pacientes nos mantem com os pés na humanidade, nos mantém atentos as necessidades do paciente e vigilantes quanto a execução de nosso trabalho, para que seja feito da melhor forma possível. Existe também um movimento na sociedade, pacientes que buscam no profissional um olhar humano e um atendimento de qualidade não só técnica.
Esta narrativa traz a força desse encontro que levou a estudante a profundas reflexões, mobilizou questionamentos e atitudes, e que também nos conduz a inúmeras reflexões:
Qual o limite devemos estabelecer entre o envolvimento emocional do médico com o paciente?
Qual a medida certa de envolvimento emocional com o paciente?
Quantas vezes será que paramos realmente para ouvir mais que as queixas clínicas?
Será que conhecer realmente o paciente, sua história, sua rotina, seus desafios diários fazem alguma diferença no diagnóstico e tratamento?
Há até quem ache que isso é perda de tempo, que não precisamos nos preocupar com questões sociais por exemplo, porém, podemos perceber na prática como um olhar baseado na integralidade pode fazer diferença significativa no desfecho da situação de “doença” e na formação do profissional médico.
E você? Como se sentiria diante de uma situação como essa? Como levantar e chamar o próximo sem sentir ao menos que precisa respirar?
Compartilhe conosco sua opinião e enriqueça essa discussão. Abaixo seguem algumas sugestões de leituras.
Sugestões de Leitura/Referências:
1. Linha de Cuidado para a Atenção Integral à Saúde de Crianças, Adolescentes e suas Famílias em Situação de Violências. Disponível em <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/linha_cuidado_criancas_familias_violencias.pdf>. Acesso em:02/11/2020
2. A importância da Inteligência Emocional para os profissionais da Saúde. Disponível em: <https://eephcfmusp.org.br/portal/online/importancia-inteligencia-emocional-saude/>. Acesso em: 01/11/2020
3. Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA completa 30 anos . Disponível em: <https://renapsi.org.br/estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-eca-completa-30-anos-de-historia>. Acesso em: 24/01/2020
4. O Aluno de Medicina e Estratégias de Enfrentamento no Atendimento ao Paciente. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/rbem/v37n2/03.pdf>. Acesso em: 25/01/2020
5. A importância da Inteligência Emocional para os profissionais da Saúde
Disponível em: <https://eephcfmusp.org.br/portal/online/importancia-inteligencia-emocional-saude/> 02/11/2020
Na minha formação esse também foi um tema muito doloroso e nos momentos que tive a oportunidade de presenciar tais consultas, sempre fiquei com muitas dúvidas sobre a melhor conduta, sobre como e para quem notificar e, principalmente, a assistência que a vítima necessitava. A primeira vez que me vi nesse dilema foi no terceiro ano de graduação em uma consulta que eu sequer presenciei, mas ouvi relato do professor e colegas. O momento mais marcante foi durante o estágio de cirurgia-geral, em um hospital de urgência, com uma adolescente de 14 anos que, muito possivelmente, estava sendo forçada à prostituição e chegou com hemorragia, além das múltiplas escoriações. Até então eu não percebia o quanto o abuso infantil faria…