Quando as palavras fogem
- integralizablog
- 19 de mar. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 15 de jun. de 2023
Dia 29/10/19, às 09:00h, “Carla”, como gosta de ser chamada, de 17 anos e sua mãe entraram na sala junto comigo, encontrando Bia, Sanjuan e Manoelito, que estavam nos aguardando. Antes de ela entrar, na verdade, já sabíamos que se tratava de uma paciente com provável problema de humor. Não fui eu quem fez a anamnese - ainda bem que não, pois, durante a consulta, percebi que não teria controle da situação se a tivesse conduzindo.
Talvez essa minha conclusão tenha algumas motivações: a primeira, seria porque, desde o início dessa semana, eu não me encontrava em minha plenitude emocional, por assim dizer. Então, seria um problema atender alguém com essa queixa e esse comportamento inusitados, pelo menos para mim – já que não havia atendido e nem presenciado um atendimento de alguém num estado tão recente da vida, mas com tamanha desventura para contar, ou melhor, para que a mãe contasse em seu lugar. E essa seria a segunda motivação para aquela minha conclusão.
Durante toda a consulta, então, pude perceber que a fragilidade da mãe ao vivenciar tudo novamente em sua memória transfigurava-se em sentimentos talvez de vergonha e culpa. Isso porque, na escuta ativa, conseguimos a revelação, dessa vez pela própria menina – muito por conta do tato de Bia que conseguiu desenvolver a consulta com maestria – de que seu avô materno teria abusado sexualmente dela por todo um ano, dos seus 12 anos de idade aos 13 anos. Carla também fermentou sentimento de culpa, mas simplesmente porque disse que não conseguiu perdoar seu avô antes que ele morresse. A menina, então, ficou cabisbaixa durante quase toda a consulta, mal respondia às perguntas. Em vez disso, olhava para a mãe para que ela solucionasse o “problema” dos questionamentos.
Tentamos, depois de escutar bastante, reduzir a tensão do ambiente através de conversas sobre músicas e séries. Às vezes, conseguíamos ver sorrisos das duas, mas que, para mim, não diziam muita coisa, pareciam mais uma tentativa de esconder o que o corpo e o olhar estavam gritando. Carla falou sobre vozes ameaçadoras que escuta e que querem o seu suicídio, sobre dificuldade de concentração, falta de energia e pensamento recorrente de morte.
Quando chegou a hora de realizar o exame físico, eu estava praticamente atordoado, até demorei um pouco para raciocinar que eu teria que conduzir o contato com a menina a partir daquele momento. Naquela hora, relembrei de quando eu era do segundo ciclo, quando tinha “receio” de examinar os pacientes, pois sentia que mais atrapalhava suas vidas do que ajudava. No terceiro ciclo, isso foi se desfazendo, mas parece que tudo tinha retornado nessa hora. Tive receio de pedir para retirar a camisa e fazer um exame respiratório mais completo e preciso, pois havia muita gente na sala e, além disso, eu, por ser homem, poderia despertar algum medo. Não sabia dizer o que poderia acontecer, e nem tenho experiência para tal resposta.
De qualquer forma, iniciei pelo exame físico geral, a ectoscopia, o respiratório com muito esforço para não me atrapalhar com a roupa, o cardiovascular com maior calma e o abdominal também com receio, pois sentia que pedir para abaixar um pouco o short poderia ser considerado também um problema. No final, percebi que todo esse medo e receio de causar maior transtorno para a menina limitou bastante o meu desempenho, até esqueci de aferir a pressão, que realizamos depois que a professora solicitou. Como a menina não tinha nenhuma queixa somática, o exame físico serviu para verificar uma provável hipertrofia de corneto – que a fazia respirar pela boca muitas vezes ao dia – e sobrepeso limítrofe para obesidade.
A professora explorou, também, bastante as ideias do que é considerado “normal”, pois os parâmetros para variam para tramas diferentes. Conversamos, por exemplo, sobre o que é o perdão e como uma perspectiva diferente para a situação poderia melhorar o sentimento de culpa de Carla. A conduta daquele atendimento pode ser sintetizada em conversa terapêutica, orientação para manter acompanhamentos psicológico e psiquiátrico e orientações dietéticas e de atividade física, que ajudariam tanto para prevenir a progressão para obesidade e para melhorar o humor. Tudo isso sinaliza a gravidade/sensibilidade do caso e a real necessidade de uma atenção maior do que justamente atender a queixa da paciente, que, para aqueles que possam perguntar, foi “não estrou menstruando há 5 meses, desde que comecei a tomar remédio controlado”.
Márcio Fellipe
Comentário do blog:
“Não fui eu quem fez a anamnese, ainda bem que não, pois, durante a consulta, percebi que não teria controle da situação se a tivesse conduzindo.”
Por meio dessa citação direta da narrativa de Márcio Fellipe, podemos destacar o receio do aluno em conduzir a entrevista já que não possuía, ainda, o conhecimento necessário para lidar com tal situação, sendo bastante comum, o despertar desses sentimentos e dúvidas nos primeiros atendimentos realizados por acadêmicos. Cenário, este que reforça a necessidade de nós, futuros profissionais de saúde ou médicos formados, sabermos lidar com o sofrimento psíquico do paciente/transtorno mental. E antes de prosseguimos, há necessidade de diferenciar tais termos.
Sofrimento psíquico significa uma desordem emocional que pode ser progressiva e trata-se de sentimentos de tristeza, ansiedade e somatizações que não configuram um transtorno mental propriamente dito e que acabam influenciando negativamente nas relações familiares, pessoais e sociais daquele indivíduo. Pode também ser ou não consequência de um transtorno mental. Já este, conceitua-se como alterações do funcionamento da mente, oriunda não de uma causa determinada, mas de fatores biológicos, psicológicos e, sobretudo, socioculturais, que afetam diretamente o pensamento, os sentimentos, as percepções, as sensações, e o modo como nos relacionamos com o outro e com o mundo.
Neste momento, a pergunta que se faz necessário responder durante essa reflexão é: como, eu profissional de saúde, lido com o sofrimento mental alheio?
Segundo o Caderno de Atenção Básica, nº 34, em primeiro lugar devemos tomar a pessoa, e não a doença, como ponto de partida para compreender o que motiva a procurar ajuda, permitindo um cuidado que se adapta à diversidade da coletividade, e ao mesmo tempo, dá conta da integralidade de cada indivíduo. No texto do acadêmico, observamos que o sofrimento do paciente ia além da sua queixa principal (a causa orgânica), exemplificando de formar clara a afirmação citada.
Em segundo lugar, devemos eliminar o estigma da expressão doença mental (ou mesmo o eufemismo transtorno mental). É um erro associar a ideia de doença mental a um julgamento moral sobre a pessoa e que aquele indivíduo que sofre é no fundo fraco, não tem fé ou espiritualidade, é violento ou até mesmo que possui uma carga genética que o condena a ter tal patologia mental.
Um terceiro ponto que podemos abordar é a identificação da vulnerabilidade do paciente, eventos de vida e seus significados (desestabilização) e o apoio social que o mesmo possui. Estes e outros parâmetros (como o acolhimento e a escuta ativa) são essenciais para um diagnóstico precoce, intervenção da crise, seguimento de longo prazo e a reabilitação psicossocial.
Outro aspecto que chama a atenção na história apresentada é a dificuldade em realizar o exame físico de uma adolescente vítima de abuso sexual. Diante dessa situação, como manter a empatia/respeito durante o atendimento sem prejudicar essa importante etapa da consulta?
Ao longo da formação no curso de Medicina, o estudante enfrenta diversas situações que podem ser geradoras de insegurança e ansiedade. A realização do exame físico é um potencial circunstância geradora de estresse para os que dão seus primeiros passos na construção de habilidades indispensáveis à carreira médica. A forma de lidar com o estresse advindo desses encontros é bastante individual e relaciona-se com diversos fatores inerentes ao estudante.
As percepções dos estudantes são de insegurança, inexperiência e invasão da privacidade de um paciente que se encontra numa situação de passividade diante da situação. E foi nesse contexto que o aluno conduziu o exame físico da melhor forma que foi possível para ele naquele momento. Mesmo tendo finalizado o exame com a sensação de que o mesmo foi limitado e incompleto, o enfrentamento da situação é a maior lição que pode ser tirada dessa experiência e servirá de base para a consolidação de um profissional técnica e emocionalmente preparado para situações parecidas no futuro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS e RECOMENDAÇÕES DE LEITURA:
DEL'OLMO, F. S. de; CERVI, T. M. D. Sofrimento mental e dignidade da pessoa humana: os desafios da reforma psiquiátrica no brasil. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, [S.L.], v. 38, n. 77, p. 197-220, 27 dez. 2017. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). http://dx.doi.org/10.5007/2177-7055.2017v38n77p197.
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COSTA, G. P. O.; FRANÇA, K. A. N. de; SANTOS, M. A. L.; GUILHERME, J. G.; MEDEIROS, J. G. M. de; SILVA JÚNIOR, E. A. da. Dificuldades Iniciais no Aprendizado do Exame Físico na Percepção do Estudante. Revista Brasileira de Educação Médica, [S.L.], v. 44, n. 1, p. 0-0, 2020. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1981-5271v44.1-20190124.
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BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde mental / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. – Brasília: Ministério da Saúde, 2013.
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