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Saúde mental e espiritualidade

  • integralizablog
  • 17 de dez. de 2021
  • 4 min de leitura

Atualizado: 15 de jun. de 2023

Pacientes com algum tipo de doença mental sempre foram meu ponto fraco (ou eu simplesmente acreditava piamente nisso). Minha primeira paciente da vida foi do ambulatório de psiquiatria e tinha sido uma experiência frustrante e dolorosa, pois o processo de contratransferência foi intenso.

Então, no dia 23 de setembro de 2021 no ambulatório de Clínica Médica, eu me deparo com uma paciente com quadro psiquiátrico complexo: histórico de tentativas de suicídio, automutilação, alucinações, episódios de hipomania e depressão... Ela tinha 19 anos de idade.

Essa foi a primeira experiência de atendimento de uma pessoa com a idade tão próxima a minha, então, ao mesmo tempo que me sentia muito seguro para conduzir o caso, eu também me identificava com muitos pontos da história psicológica pregressa da paciente.

Thalita (nome fictício) entrou na sala acompanhada da mãe Lourdes (nome fictício) e era notável o seu desconforto. Quando lancei a primeira pergunta: “como posso ajudar vocês?”; ela imediatamente olhou para a mãe e pediu para que ela contasse a história, porém Lourdes insistia para que ela falasse, já que ela era a paciente de fato.

Apesar de muito contida e insegura, Thalita iniciou falando das suas tentativas de suicídio e as práticas de automutilação que tinham iniciado aos 14 anos de idade. Ela conseguia associar o quadro à morte do avô, que tinha ocorrido semanas antes, e por quem ela tinha muito apego. Logo depois começou a falar o real motivo da sua ida até a UBS... Ela fazia uso de 4 medicamentos controlados (Carbonato de Lítio, Quetiapina, Alprazolam e Bupropiona) desde a primeira tentativa de suicídio e, recentemente, o médico que já a acompanhava há muitos anos, havia diminuído 1 mg de um dos seus indutores do sono (Alprazolam), já que ele estava começando a afetar a sua memória. Essa mudança foi o bastante para levar Thalita a ter quadros de insônia, associada a pesadelos vívidos e alucinações táteis e auditivas.

Enquanto Thalita olhava no fundo dos meus olhos, buscando apoio e empatia pelas suas queixas, eu tentava garantir que ela se sentisse segura naquele espaço para expressar todos os seus sentimentos em relação aquela situação. Foi complicado no início porque aquilo tocava em pontos muito específicos na minha própria vida, pontos já superados, porém que me fizeram compreender a dor de Thalita.

Em um outro momento, eu indaguei sobre a sua infância e adolescência. E, nesse instante, eu me senti mais conectado ainda a ela, já que muitos fatos eram muito semelhantes à minha própria vivência. Contudo, ao invés de me perturbar e desestabilizar, um sentimento de cuidado tomou conta de mim. Eu pensava: “Eu já passei por isso e estou aqui do outro lado, vivendo e me sentindo cada dia mais confiante. Então, quero que ela se sinta assim também ou ao menos consiga enxergar uma luz no fim do túnel”.

A partir daí, eu comecei a perguntar sobre quais os planos dela para o futuro, já que ela tinha terminado o ensino médio e descobri que ela tinha muita vontade de se sentir bem consigo mesma, inclusive tinha sonho de se tornar uma policial forense. Além disso, descobri que ela era muito bem amparada, na perspectiva do cuidado multiprofissional, já que ela fazia acompanhamento com psicólogo, terapeuta ocupacional e nutricionista (para um caso recente de perda de peso não intencional, chegando a perder 18 quilos no último ano). Ainda, tinha hábitos de vida adequados, não era etilista, tabagista (e entendia a importância disso para seu quadro) e, além de se alimentar bem, praticava exercícios físicos diariamente.

“O que então pode ser feito?”, “Qual orientação deve ser dada a uma pessoa que supostamente faz tudo corretamente para sua saúde mental? Apenas mudança na medicação?”; essas perguntas rondavam os meus pensamentos e, inevitavelmente, eu só conseguia parabenizar Thalita pelos seus esforços para se manter bem, inclusive orientando sobre o tripé “alimentação-exercícios-medicação” para o caso dela.

Após a terminar a anamnese e exame físico, chamei a professora para passar o caso. E, a partir desse momento, eu pude compreender, na prática, o que era visão biopsicossocial e espiritual, que tanto eu tinha ouvido falar. Logo de início, apressado para que a professora auxiliasse Thalita, eu comecei apresentando-a de forma rasa e comecei a descrever as suas queixas..., mas fui interrompido:

“Victor, quem é Thalita?”; esse simples questionamento me rendeu profundas reflexões após a consulta e me fez perceber que quem importa, apesar de tudo, é quem é o nosso paciente.

Terminei de passar o caso para a professora e, então, uma pergunta foi feita: “Em que você acredita? No que você se apega quando tudo sai fora do eixo?”. Thalita parecia confusa e dizia não ter crenças.

A abordagem que se seguiu, na perspectiva da espiritualidade, foi incrível e me fez compreender que meu papel de futuro médico vai muito além... E que as possibilidades de se orientar um paciente, seja lá qual for sua queixa, deve partir da premissa de quem é aquela pessoa, no que ela dedica a sua espiritualidade e em que contexto ela está inserida.

Ao final da consulta, Thalita parecia grata por ter sido ouvida e acolhida. Parecia mais confiante em relação as suas demandas e isso foi extremamente gratificante. Até hoje, foi a consulta mais interessante que participei, porque além de praticar a medicina, eu pude praticar o cuidado integral e a empatia... E, de fato, consegui tocar e ser tocado por Thalita.



Autoria: Víctor da Silva Teixeira



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1 Comment


leticiavasco
Dec 18, 2021

Esse relato indica que cada vez mais a medicina tem despertado para unir o conhecimento científico e a espiritualidade.

Fico muito feliz e esperançosa para que os futuros profissionais de saúde utilizem a empatia , o conhecimento científico e a espiritualidade envolvidos na técnica do amor.

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