top of page

Se eu pudesse voltar atrás

  • integralizablog
  • 9 de abr. de 2021
  • 3 min de leitura

Atualizado: 15 de jun. de 2023

Juçara foi minha primeira paciente do internato. Sua lembrança é clara e dolorosa para mim até hoje, cerca de trinta anos depois. Ela já estava internada na enfermaria de Clínica Médica quando passei a acompanhá-la como interna. Tinha a minha idade e suspeita de câncer de intestino com metástase. O convívio diário nos aproximou e lembro que minha maior dificuldade era falar sobre a sua doença. Ela sempre me perguntava e eu não sabia o que responder. A professora me orientava sobre como fazer essa abordagem, mas era muito difícil para mim, uma menina tímida, assustada, com medo da vida, com medo da morte. Não lembro se cheguei a falar de forma explícita sobre o seu diagnóstico. Não sei como me despedi dela quando acabou o rodízio.


A professora me orientava sobre como fazer essa abordagem, mas era muito difícil para mim, uma menina tímida, assustada, com medo da vida, com medo da morte.


Algum tempo depois, o colega que a estava acompanhando me disse que o estado dela havia se agravado e que ela chamava muito meu nome. E aquilo me paralisou. Tive medo, não fui visitá-la, considerei cumprida minha função de interna, mas falhei na minha “função” de ser humano. E me arrependo até hoje. Hoje tenho ideia do bem que poderia ter feito a ela naquele momento final da vida, do apoio que poderia ter sido para ela. Hoje faria tudo diferente, continuaria a visitá-la, mesmo não sendo mais responsável por seu acompanhamento, pois estaria comprimindo um papel mais importante, de um ser humano apoiando outro ser humano. Falhei e hoje choro ao lembrar de Juçara e peço perdão por não ter estado ao seu lado no momento em que mais precisou de mim.


Márcia Neves De Carvalho


COMENTÁRIO


A atitude de Márcia, por mais que nos pareça estranha em um primeiro momento, não é rara de se observar quando estamos diante de um paciente com diagnósticos reservados e difíceis prognósticos, que é o caso de um câncer. É válido ressaltar, no entanto, que precisamos desapegar, muitas vezes, do pragmatismo das funções as quais nos são atribuídas no nosso cotidiano para podermos vivenciar de fato momentos que nos engrandecem enquanto cuidadores.


“Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana.”

Carl Jung


Ainda há quem diga que ao longo da formação na área da saúde somos privados de demonstrar explicitamente emoções ao longo da assistência que ofertamos, pensamento que não pode mais ser corroborado e perpassado como um "senso comum" nos corredores e salas de aula das faculdades em medicina. A formação médica exige que sejam estimuladas habilidades de tornar-nos seres humanos completos e com essência empática para que seja possível que a técnica e o rigor científico caminhe lado a lado com a sensibilidade.

Esse tipo de habilidade precisa ser treinada, assim como treinamos procedimentos e critérios diagnósticos. Por isso a importância de reviver esse relato: décadas após o acontecido, a autora ainda sentia as dores que foi viver esse momento de construção de sua formação.

Além disso, vemos que em casos como neste relato, a comunicação seria a peça-chave para que a humanização fosse consolidada como parte do nosso cuidado. Tal ferramenta nos será útil se realizarmos práticas de autoconhecimento, para, assim, sabermos dosar sentimentos e anseios na busca de criar uma relação recíproca com o paciente (RENNÓ; CAMPOS, 2014).

Não podemos deixar que mais Juçaras enfrentem a dor de um quadro terminal sem o devido apoio a quem primeiramente semeou e se corresponsabilizou pelo vínculo ofertado. É necessário enfrentar o medo comum ao acompanhamento de uma situação tão delicada, em vez de afastar o apoio tão singular de quem precisa ser ouvido nos últimos momentos da sua vida.

Que Juçara floresça na memória de Márcia como alguém capaz de despertar sua coragem para estar mais presente em momentos dignos de serem vividos, sem que o receio e apreensão não a prive de aproveitar oportunidades que se esvaem rapidamente e somente possam ser eternas lembranças.


E você leitor, quantas Juçaras passaram na sua vida? Escreve pra gente poder sentir junto.


Referências:

RENNÓ, C.B.S.; CAMPOS, C.J.G. Comunicação interpessoal: valorização pelo paciente oncológico em uma unidade de alta complexidade em oncologia. Revista Mineira de Enfermagem, v. 18, n. 1, p. 106-125, 2014.

Posts recentes

Ver tudo
Discussão: Etiologia

A autora relata que após a paralisação das atividades acadêmicas na pandemia do COVID-19 reiniciou um velho hábito, o da leitura.Há...

 
 
 
Etiologia

Durante os quase 2 anos de pandemia as atividades presenciais da Universidade Federal de Sergipe foram suspensas, sendo as atribuições...

 
 
 

Comments


© 2023 por Integraliza. 

  • Instagram - Black Circle
bottom of page