Sinais
- integralizablog
- 22 de mai. de 2021
- 3 min de leitura
Atualizado: 15 de jun. de 2023
Estávamos em um grupo de cinco. Era a penúltima semana no rodízio de Clínica Médica. Nesse dia estávamos escalados para o ambulatório de gastroenterologia. Verificamos o sistema eletrônico: apenas dois pacientes agendados. A tarde seria rápida. A primeira paciente já aguardava lá fora. O outro não havia chegado ainda.
Fiquei responsável por chamar a paciente. Noemi Carvalho, eu chamo já me posicionando ao lado da balança que fica externa ao consultório. Levantam-se duas mulheres, uma idosa e uma jovem que devia ser da mesma faixa etária que eu. Incerto de quem seria a paciente, falei na direção de ambas: - Dona Noemi, antes de iniciarmos, podemos verificar seu peso? Nesse momento a jovem (a quem chamaremos de Rute) falou: - Desculpa. Ela não escuta. E começou a gesticular para a paciente indicando a ela que iríamos aferir seu peso corporal.
Naquele momento pensei: Isso é LIBRAS? Caramba! Eu não estava preparado para essa. Eu não sei LIBRAS. E acredito que nenhum dos meus colegas também.
Ali mesmo, fui logo pedindo desculpas e avisando a Rute que iríamos precisar de sua ajuda na consulta pois não sabíamos a linguagem de sinais.
No que ela me respondeu que a paciente não era alfabetizada e também não havia sido treinada na linguagem de LIBRAS. Os gestos feitos ali era uma forma de comunicação própria desenvolvida pela relação familiar. Ou seja, mesmo que eu soubesse a linguagem brasileira de sinais, estaria diante de um desafio, pensava eu.
A consulta seria conduzida por minha colega pois como estávamos num número maior naquele dia, fazíamos um rodízio de atendimentos. O motivo da consulta era uma dor na região abdominal já há algumas semanas. Com a ajuda de Rute, que era sobrinha-neta de Noemi fomos conseguindo algumas informações, mas nada tão elaborado como usualmente. Perguntar se a dor era em cólica ou em queimação? Esquece! A linguagem própria de Noemi não era tão desenvolvida a esse ponto.
Estávamos diante de uma paciente de 63 anos, que morou na capital durante os dois últimos anos com uma sobrinha e que há dois meses precisou ir morar com sua sobrinha-neta. Nessa troca de domicílios foram esquecidos os seus remédios, dentre eles a medicação do hipotireoidismo. A família da capital havia perdido as embalagens e ninguém sabia a dose correta da medicação. Rute, bastante dedicada, decidiu então marcar todas as consultas médicas necessárias para Noemi.
Rute nos mostrou vários exames complementares da paciente. Dentre eles, um hemograma acusando pancitopenia (termo que utilizamos para descrever quando todas séries sanguíneas estão abaixo dos valores normais). E agora um novo desafio, investigar uma causa para essa pancitopenia. Várias perguntas feitas, Rute sempre nos ajudando com os sinais, e nada de relevante encontrado. Até a última pergunta: mais alguma queixa?
Ah, esses dias ela se queixou de um caroço na mama, respondeu Rute. Dói? Rute faz um sinal de dor. Noemi acena positivamente. Em resumo de história, ao exame físico, encontramos um nódulo de textura pétrea com 4cm de diâmetro na mama da Noemi. Um sinal sugestivo de câncer de mama. Necessitaria de uma mamografia o quanto antes. Além de uma consulta com Hematologia para investigar a pancitopenia.
Dali a uma semana, Noemi foi chamada para a consulta no ambulatório de Hematologia. Era minha última semana no módulo e eu estava escalado para outro ambulatório. Mas indo atrás de informações, meus colegas e eu descobrimos que no mesmo dia da consulta anterior ela conseguiu realizar a mamografia e lá mesmo já havia sido informada de que era altamente sugestivo de câncer. O módulo acabou e infelizmente nunca mais tivemos notícias de Noemi, até mesmo porque seu caso passaria a ser acompanhado em outra instituição.
Mas fiquei pensando sobre essa paciente por um bom tempo. A dificuldade que tivemos em nos comunicarmos com ela. Sem a presença de Rute, seria mil vezes mais difícil realizar a consulta. Além disso, fico imaginando: uma anemia importante, algum tempo sem tomar medicação de hipotireoidismo, um nódulo na mama daquela dimensão... para cada situação dessas o corpo gera sinais. Mas pela falta de palavras, Noemi não conseguiu mostrar esses sinais mais cedo. Talvez o prognóstico dela fosse melhor se em algum momento alguém tivesse conseguido se comunicar com esses sinais que o corpo dela apresentava.
Autoria: Alejandro Wolfferson dos Santos
Universidade Federal de Sergipe
Comments