Sinceridade através do olhar
- integralizablog
- 29 de jan. de 2024
- 3 min de leitura
Dia 14 de outubro de 2022 foi um dia atípico para mim. Normalmente, faço parte de um trio e atendemos sempre juntos; neste dia, porém, fui realocada com outro colega para atender uma paciente (M. M. J., 23 anos) que havia chegado de última hora. Logo quando fui até meu colega, fui avisada que nós teríamos uma “missão” -ou melhor, um desafio-, pois já havia algum tempo que alguns profissionais da UBS estavam tentando trazer M. M. J. para ser cuidada...sem sucesso. Fomos alertados ao fato de que se tratava de uma paciente depressiva e difícil de conquistar. Pensei que não iríamos conseguir.
Pois bem.
Encontramos M. M. J. e a chamamos para entrar no consultório. À inspeção: olhos marejados e supercílios cabisbaixos; dor emocional visível, se é que isso é possível. Sentamos. Como em rotina, iniciamos as perguntas de identificação e motivo da consulta. Ao ser questionada a respeito da mãe (não havia nome no prontuário anterior), referiu aos choros ter sido abandonada pela figura materna. Refleti que parte da sua tristeza profunda estaria associada ao doloroso sentimento de abandono...
Ao perguntarmos o motivo da consulta, a paciente referiu querer “colocar um DIU (Dispositivo Intrauterino) porque nunca mais quero ter filho”. Perguntamos quantos filhos ela tem...Aos choros, relatou ter 2 filhos pequenos, mas não manter contato com eles, explicando que as crianças foram levadas “à força” para morar com os avós paternos após uma briga trágica. Não entendemos muito bem, mas não queríamos forçar...e voltamos às perguntas de identificação e motivo da consulta principal. Quando esgotamos esta parte, questionamos se haveria mais alguma queixa que gostaria de relatar. Então, ela disse que sentia “vontade de morrer” há 3 anos, após um acontecimento trágico de uma briga que envolveu tiroteios e morte de um indivíduo. Ela, à época, grávida do 2° filho, presenciou uma parte da violência e ainda se machucou fortemente. Um tempo depois, referiu que a família do seu ex-marido, envolvida na tragédia, se mudou para um interior não especificado, levando junto seus filhos e acusando M. M. J. de não ter condições financeiras de cuidar das crianças devido ao fato de morar com o pai. Segundo M.M. J., foi aí que tudo começou a desandar, pois referiu não enxergar mais sentido em sua vida depois de tantos acontecimentos cruéis e difíceis.
Associado a esses sentimentos, expressou não ter apetite e sono, além de iniciar consumo de álcool e tabaco. Referiu que uma tia e duas primas (uma, inclusive, estava presente na consulta) eram responsáveis por cuidá-la, visto que, por si só, já havia se entregado à morte.
...
Após o exame físico, evoluímos a consulta para a parte em que passamos o caso para a professora Flor. A sensibilidade e o aconselhamento foram o foco do manejo...A proposta principal de dra. Flor foi a construção de um projeto de vida (empregatício, estudantil) com cuidado emocional (inicialmente medicamentoso), necessário para que M.M.J. pudesse se recompor enquanto pessoa e conseguir a guarda dos seus filhos novamente. A consulta inteira que se desenvolveu com cuidado à saúde mental (escuta atenta, paciência, compreensão, disposição em ajudar e zelo compartilhado das emoções), também finalizou com esse sentido, acompanhado de aconselhamento sobre autorresponsabilidade.
Cereja do bolo: o fato de dra. Flor relembrar a paciente de que ela é forte, saudável e capaz de lidar com adversidades e conquistar o que almeja, visto que está em nós a solução para os nossos próprios problemas.
E então, a consulta finalizou.
À inspeção: lágrimas secas, supercílios no lugar, sorriso na boca; alívio emocional visível, se é que isso é possível de enxergar.
Esperança.
A história difícil de ouvir (imagine de viver) de M.M.J. ajuda a demonstrar o quanto as unidades médicas podem encontrar-se cheias de pacientes que têm problemas e necessidades para além de biológicas. Nossas dores psicoemocionais podem ser tão fortes e fatais quanto as físicas. Costumam dizer que isso é clichê, mas será que estamos atentos ou só acostumados?
A feição de M.M.J. ao sair da consulta eu nunca esquecerei, porque é o que faz valer a minha prática. Eu só quero que ela fique bem.
Para mim, só faz sentido se for assim.
A resolutividade na área médica está longe de conter-se em número de atendimentos por dia e quantidade de tratamentos bem-sucedidos. Envolve, acima de tudo, a percepção do paciente de sentir-se cuidado, aceito, acolhido e satisfeito com o olhar, o toque e a pesquisa clínica no atendimento. A pesquisa clínica sendo uma parte tão importante quanto as outras durante todo o processo, já que o fim último da medicina é fazer o bem. E fazer o bem é, primeiro, saber tratar bem.
Para a paciente querida M.M.J., espero que você consiga se encontrar dentro de si mesma a ponto de nunca mais ser possível pensar em desistir de si.
Luana Maria Cavalcanti Queiroz
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