Um peso desnecessário.
- integralizablog
- 16 de abr. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 15 de jun. de 2023
No dia 19/07/2019, eu e um amigo de turma da faculdade fizemos o primeiro atendimento de um módulo da faculdade em que frequentávamos uma UBS, sob supervisão da Profª MSSM. RRSS, uma mulher de 53 anos, casada, católica, moradora da Colônia 13, compareceu à UBS para dar seguimento ao seu plano de cuidados. Levou com ela os exames solicitados na última consulta, radiografias e ultrassonografias dos dois joelhos, radiografia de cotovelo direito e colposcopia. Solicitei que primeiro conversássemos sobre como ela estava se sentindo. Ela relatou melhora da ansiedade — aspecto detectado na consulta anterior que foi adicionado à sua lista de problemas.
No entanto, durante a conversa era perceptível que esse problema ainda estava mal controlado. Um dos motivos principais, era a preocupação com neto com TEA e que tinha recorrentes reações de hipersensibilidade.
Foi comentado que, após um episódio prévio de violência por uma babá, ela não confiava mais deixar o neto com ninguém a não ser sua filha (mãe da criança). Todas as semanas, na segunda, terça e quarta-feira, RRSS se desloca até o município de Salgado para cuidar do neto pela tarde. Isso foi o motivo para não comparecer mais às sessões de pilates, as quais haviam melhorado uma lombalgia da qual se queixava anteriormente. Nesse momento, comentei que o pilates era importante para a continuidade da manutenção dessa dor e para a prevenção de piora do quadro. No entanto, ela comentou que havia como deixar de cuidar do neto.
Tentei propor soluções como a de dividir essa tarefa com algum outro parente, mas não houve jeito. Pensei na hora como seria difícil convencê-la, já que parecia ser uma pessoa bem inflexível com sua rotina. Na hora, refleti um pouco sobre mim, pois também tendo a ser inflexível em várias situações.
Além da preocupação com o neto, ela demonstrava-se preocupada com várias outras coisas. Comentou que na quinta e na sexta também ia a Salgado para fazer a faxina da casa dos pais. Indaguei se outros irmãos também não poderiam dividir essa tarefa, para não a sobrecarregar. Nesse momento, quando ela iniciou sua fala, me vi em frente a um espelho. Ela relatou que, por ser a irmã mais velha, ela sempre foi cobrada pelos pais e por ela mesmo de resolver tudo, de deixar tudo da melhor forma possível. Comentei com ela que eu sentia essa cobrança também, durante toda a minha vida, e que era necessário que entendêssemos que não podemos abraçar o mundo, que também era necessário deixar que os outros se responsabilizem por parte dos afazeres para que possamos cuidar também de nós mesmos.
No exame, quase tudo estava dentro da normalidade. Porém, algumas coisas me chamaram a atenção. A pressão arterial estava de 154/82 mmHg. Isso fez com que eu ou meu colega (não recordo com precisão) questionasse sobre o uso da losartana, a qual havia sido prescrita na consulta anterior. A paciente relatou que ele não estava regular, que às vezes esquecia de tomar. Outro achado foi o de crepitações audíveis de grande intensidade durante a flexão dos joelhos. Quando ela me mostrou como era ruidoso o movimento, fiquei incrédulo. Na hora pensei “nunca que eu imaginaria que uma crepitação de articulações pudesse ter tal intensidade”. Pedi para olhar os exames de imagem. Tanto as radiografias como as ultrassonografias estavam laudadas como sem alterações. Observando as imagens eu também achei naquele momento que estavam normais. Mais tarde, quando as mostrei à Profª e passei minha impressão sobre elas, vi que estava equivocado. Havia diminuição do espaço articular nas articulações dos joelhos e uma possível deposição óssea nas porções laterais dessas articulações. Quando cheguei em casa, procurei radiografias normais e vi que realmente havia grande discrepância. No momento me questionei o quanto os laudos são capazes de influenciar as nossas análises.
Ao passar a história e os achados do encontro até aquele momento, eu contei à Profª sobre o comentário da auto cobrança excessiva por ter sido sempre cobrada por ser a primogênita. A mestra prontamente rebateu a informação para a paciente comentando que se via em situação semelhante durante parte de sua vida, depois da qual percebeu que, caso continuasse levando-a desse modo, ela estaria sempre carregando um peso desnecessário. Então, RRSS se emocionou, junto a mim. Não cheguei a chorar, mas lacrimejei, pois via muito de mim naquela situação relatada pelas duas. Isso, de alguma forma, me tocou.
Durante a conversa com a paciente, a Profª também conseguiu extrair mais uma
preocupação vivida por ela. Foi comentado que passou uma noite sem dormir nas semanas anteriores por aflição. Tinha medo que o esposo perdesse o interesse em relação a ela depois que a mesma conseguisse sua aposentadoria. Comentou que não tinha problema com ele, que ele era um marido muito bom, mas que homens tendem a perder o interesse em suas companheiras. MSSM disse que não havia um porquê de ter essa aflição com coisas que ainda nem aconteceram e que são apenas uma possibilidade remota. Nessa hora, a Profª nos relatou que na consulta anterior com RRSS, foi relatado que ela varria a casa seis vezes por dia e que passava a roupa do marido com um cuidado exagerado. A paciente confirmou e disse que se não fosse desse jeito, para ela o mundo não estava certo, ela não sossegaria. Então MSSM comentou que isso era um sinal de TOC. Ao fim, foram passados para nós os planos diagnóstico e terapêutico. Explicamos à paciente e pedimos que ela os seguisse e marcasse a consulta de retorno. Agradecemos pela oportunidade de poder aprender ao praticar a arte exercer escuta, observação e conforto ao próximo e a levamos até a porta para nos despedirmos, ou melhor dizermos um “até logo”.
Vinícius Pimentel.
Comentário do Blog:
A narrativa dessa semana traz como uma das temáticas principais a experiência de um dos sentimentos (se não o mais importante deles) que nos diferencia enquanto seres humanos: a empatia. Ao atender a senhora RRSS, Vinícius se deparou com uma paciente já encaminhada, que trazia, inclusive, os resultados dos exames em mãos. Mesmo frente à possibilidade de ater-se à avaliação da queixa atual – biológica, especificamente -, o aluno e seu colega escolheram ouvir a paciente, e entender que outras questões a motivavam, ou a afligiam.
Ao ouvir o relato de RRSS, nosso autor não apenas compreendeu a “queixa” da paciente, como a seu modo, identificou-se com a mesma. A ansiedade de dona RRSS tinha muito a ver com algo que Vinícius experienciara anteriormente: a sobrecarga de lidar com sentimentos, demandas e expectativas da família próxima. Perceba que, ao entender o local em que o outro se encontrava, e ao entender a gama de sentimentos que se refletiam em RRSS, nosso autor foi capaz de compreender mais aprofundadamente e de modo mais “integralizado” o processo de adoecimento de sua paciente, bem como de propor possíveis soluções dentro da realidade de RRSS.
Em qualquer âmbito da nossa vida, pessoal, profissional, educacional, lidar com pessoas é uma constante. E uma constante obrigatória: são nossos professores, alunos, clientes, chefes, familiares, amigos... E saber lidar com essas pessoas, com experiências, discursos, vivências, ideias, crenças tão diferentes é uma das habilidades mais importantes que podemos possuir. Na área da saúde, atender diretamente às pessoas corresponde à maior parte do nosso ofício. Ouvimos suas queixas, tentamos interpretar os sinais que nos são dados, encontramos informações na subjetividade. Um médico que escuta, e não apenas ouve, tende a ir além com o seu paciente.
David Berlo (1999) afirma que fonte (aquele que emite uma informação) e receptor (aquele que a recebe) são interdependentes em qualquer situação de comunicação, e é essa interdependência que pode nos levar à empatia, que o mesmo autor define como a capacidade de nos projetarmos dentro das personalidades de outras pessoas.
Desde a antiguidade, por meio da medicina hipocrática, busca-se estreitar a relação médico-paciente, visto os inúmeros benefícios humanos que a mudança de foco da doença para o “doente” traz. No contexto da Atenção Básica, esse é, talvez, um dos nossos principais objetivos: criar vínculos entre pacientes e profissionais da saúde, para usufruir dos diversos ganhos já comprovados cientificamente.
O estabelecimento de vínculos e o desenvolvimento da empatia nas relações médicas são capazes de deixar o paciente mais seguro e disposto a informar seus problemas, suas dúvidas... e essa postura é capaz de transformar o modo como o mesmo participará dos processos diagnósticos e terapêuticos a que serão expostos no ambiente clínico.
Note que quando a professora retorna ao consultório, que ouve a história contada por Vinícius e dialoga - seguindo a mesma linha de abordagem do estudante - com a paciente, a mesma se emociona, se abre, revelando informações importantes à médica e ao estudante, que justificaram, inclusive, os achados no exame clínico realizado anteriormente. Logo, podemos perceber a importância da humanização no atendimento em saúde: como a escuta ativa, o processo efetivo de comunicação interpessoal, a criação de vínculos e o estabelecimento de uma relação empática são importantes aliados no processo de saúde-doença dos pacientes, e na construção social dos profissionais de saúde.
Referências Bibliográficas e Sugestões para Leitura:
BERLO, David. O processo da comunicação: introdução à teoria e à prática. 9. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
RENNÓ, C.B.S.; CAMPOS, C.J.G. Comunicação interpessoal: valorização pelo paciente oncológico em uma unidade de alta complexidade em oncologia. Revista Mineira de Enfermagem, v. 18, n. 1, p. 106-125, 2014.
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