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Versatilidade das UBS's

  • integralizablog
  • 5 de mar. de 2021
  • 5 min de leitura

Atualizado: 15 de jun. de 2023

De início, eu e minha dupla fomos achar uma sala pra atender e ficamos na de Drº Adriano. No caminho, a gente viu um pouco do prontuário e algumas informações estavam grifadas de marca-texto, que diziam que a paciente estava gestante, tinha tido 4 partos e 1 aborto.

Quando chegamos na sala, minha amiga chamou a paciente, eu fiquei responsável por organizar e ir lendo o prontuário e os dados da gestação. A paciente chegou e perguntamos sobre a queixa, ela disse que era sangramento. Na hora que ela disse isso, meu coração gelou, nem tive tempo de raciocinar porque uma mulher chegou para dizer que a sala estava ocupada. Por isso, fomos tentar achar outra sala e, enquanto procurávamos, eu só pensava: A PACIENTE ESTÁ ABORTANDO, DAQUI QUE CHEGUE NO HOSPITAL, O BEBÊ JÁ MORREU. SOCORRO, MEU DEUS, ME AJUDE!!! Nesse momento, eu estava tão concentrada em ajudar rápido que eu não lembro de ter ouvido nenhum barulho da UBS que eu estava ouvindo antes. Apesar disso tudo, por fora, tentei parecer super controlada.

Achei a professora, contei a situação e achamos outra sala. A professora estava calmíssima, falou que, provavelmente, teríamos que encaminhar para o HUL, mas, por dentro, eu estava calculando o tempo que ia demorar para ela ser atendida. Chegamos na outra sala, só aí fui prestar atenção nos dados de identificação da paciente: Ângela, 41 anos.

Quando sentamos, ela não quis sentar, estava apreensiva e com sangramento intenso, ela já havia informado que estava saindo uns “bolos pretos e estava vazando”. Daí, então, comecei as perguntas e a primeira foi: “você tá grávida de quantas semanas?”. Ela me respondeu que não estava mais. Um respiro de alívio e uma sequência de dúvidas. Senti que meu cérebro começou a funcionar mais organizado, o que era pra ser um RCOP, do nada, virou um pronto-atendimento. Nesse momento, só foquei em coletar informações rápido pra oferecer socorro para o sangramento uterino.

Passado o susto, comecei a perguntar coisas bem pontuais e ela foi contando sobre o aborto há um mês, a internação no HUL por 5 dias, as duas ultrassonografias transvaginais normais e que tinha menstruado na última sexta, mas que, na segunda, começou a ter esse sangramento intenso e que da noite anterior para aquela hora, mais ou menos 9 da manhã, já havia sujado 12 absorventes noturnos. Perguntei sobre outros sintomas, ela negou tudo. Então, como sabia que não era tão emergente mais, fui perguntando sobre a vida dela, filhos, gestações passadas e outras coisas. Ela falou que tinha 2 filhas e 2 filhos, eu fiquei me perguntando o porquê de uma pessoa de 41 anos que já tem 4 filhos, tanto homem quanto mulher, iria querer ter mais filhos. Daí, eu perguntei com quem ela morava, ela disse que só com o “namorido”, com quem estava há 8 meses e iria se casar e que dele não tinha filho nenhum. Mas isso não me chamou tanta atenção, o que eu fiquei mais intrigada foi quando ela falou que o filho mais novo, Igor, de 16 anos, foi atrás do pai no interior do sertão da Bahia 2 semanas atrás. Ela falou que Igor era a companhia dela, que agora ela ficava sozinha o dia todo e ficava triste com isso. Fiquei pensando que, talvez, essa vontade de outro filho fosse para suprir essa solidão e tristeza que ela sente.

No começo, achei que ela não estava se importando muito com o fato de ter abortado, mas depois que ela contou isso de ficar só, vi que, quando voltei ao assunto de querer ter filho, ela ficou chorosa. Eu fiquei com pena, solidão não é flor que se cheire. Também perguntei se o “namorido” queria o filho, ela disse que, no início, não, mas depois queria.

Depois investiguei os medicamentos em uso, vi que ela tomava fenobarbital, carbamazepina e prometazina. Nesse momento pensei: “Quanto remédio pesado, será que tem depressão?” Fui perguntar, era epilepsia. Fiquei meio decepcionada porque todo mundo dizia que aquela região era cheia de casos psiquiátricos e, apesar de eu não gostar e muito menos querer o mal dos outros, fiquei tipo: “ah, só epilepsia né? Tá bom então.” Vi também que ela tinha problema para dormir e tomava clonazepam. Tudo isso, ela tomou até os dois meses de gestação, até pensei: “Agora pronto, tudo explicado.”. Mas depois vi com a professora que a idade era mais grave.

Chegou a hora do exame físico e minha dupla foi fazer. Voltei o foco a Ângela e senti a tristeza dela, não é fácil perder um filho. Achei que ela mesma estava tentando tratar aquilo como algo normal, mas aquele filho, talvez, significasse esperança de uma vida com a certeza de um alguém sempre ao lado.

Logo depois a professora chegou, pude esclarecer que não era um aborto e expliquei a história. Fiquei observando como ela conversou com a paciente sobre esse desejo versus risco. Achei muito evoluído o jeito que a professora aplicava o MCCP. Cada momento dessa conversa e da consulta foi um aprendizado pra mim, sobre minha vida, sobre como ajo, sobre meu desejo de ajudar e sobre o motivo de ter escolhido medicina, que, às vezes, na pressa do dia-a-dia, o motivo das escolhas acabam ficando quase imperceptíveis.

Não saber o que esperar, a emoção de viver algo urgente, de se enganar devido ao prontuário muito resumido, de ter que trocar de sala, de, por um segundo, não saber o que fazer, mas ter a vontade de ajudar e a empatia de se colocar no lugar dela foi gratificante.


Autoria: Nathália Santos Cunha

UFS- Lagarto


Comentário/Discussão da equipe editorial do Blog:


Primeiramente, gostaríamos de agradecer à aluna por compartilhar a sua experiência enquanto discente. O encontro clínico é um desafio durante a formação médica, é nele que aprende-se habilidades de comunicação, a aplicação da semiologia e inicia-se, também, a tomada de condutas compartilhadas entre aluno, professor e paciente.

Nos anos iniciais, durante o processo de maturação acadêmica, é comum o discente deparar-se com esses dilemas para diferenciar eventos agudos, sub-agudos e crônicos e qual conduta tomar a partir da identificação do problema de saúde que leva uma pessoa ao encontro clínico.

O texto nos traz ainda reflexões sobre empatia, através da qual a aluna encara o desejo de uma nova gestação como forma de suprir um ninho vazio – termo utilizado para explicar o sentimento de solidão que pais, geralmente idosos, sentem com a saída dos filhos de suas casas.

Além disso, podemos ver a insegurança do estudante de medicina diante de paciente com história de sangramento, sentimento que é melhorado com o passar do tempo e com a aquisição de novas experiências. Por meio do Método Clínico Centrado na Pessoa aplicado pela profissional, a discente consegue ir para além do sangramento, ela enxerga a paciente inserida em seu contexto de vida, buscando entendê-la como um ser holístico.


Compartilhe conosco nos comentários a sua opinião sobre o texto!


Sugestões de Leitura:


Referências:

1. TRINDADE, Leda Maria Delmondes Freitas; VIEIRA, Maria Jésia. O aluno de medicina e estratégias de enfrentamento no atendimento ao paciente. Rev. bras. educ. med. [online]. 2013, vol.37, n.2, pp.167-177.

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1 Comment


Aike Teixeira
Aike Teixeira
Mar 12, 2024

Adorei. Incrível!

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